Por Jandira Feghali*

Não há civilização no mundo onde as diferentes faces do sagrado coexistam tão pacificamente como no Brasil. Sua pluralidade estampada em tantos credos, reforçada no simbólico de cada fé de nosso povo, é uma qualidade de poucas nações. São mitos com características básicas da Teologia, como elementos divinos, princípios de crenças sobre as pessoas, o que somos e por que viemos ao mundo. Esta realidade tem causas profundamente democráticas.

Muitos não sabem, mas veio de Jorge Amado a emenda que inseriu na Constituição de 1946 a liberdade religiosa no Brasil. Comunista, o escritor de Tieta do Agreste foi deputado na Assembleia Constituinte de 1946, deixando ao país um legado precioso sobre direitos e garantias das liberdades individuais. Hoje, o inciso VI do artigo 5º da Constituição determina a liberdade de consciência e de crença. Os ventos da democracia sopram em defesa do Estado laico, protegendo o exercício da fé de cada um, ou mesmo da não fé.

Na contramão da tolerância e de qualquer razoabilidade, o juiz Eugenio Rosa, da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, através de perigosas e particulares interpretações, negou a retirada de vídeos do Youtube que agrediam religiões de matriz africana. O argumento é que, por não serem religiões "oficiais", não há “malferimento de um sistema de fé”. Ou seja, não há ofensa em dizer que tais crenças são "coisa do diabo" e que "devem ser combatidas".

Com uma simples canetada, carregada de preconceito e intolerância, negou a religiosidade do povo brasileiro, inerente a sua formação cultural diversa. Perpetuou a perseguição contra a fé, o direito da livre crença e, neste caso, contra as religiões umbanda e candomblé, hoje praticados por meio milhão de brasileiros.

Não cabe à Justiça e dela não depende o reconhecimento da religião, mas é sua obrigação respeitar o que diz a Carta Magna, construída por tantas aspirações progressistas, como a de Amado. A decisão do juiz Eugenio Rosa desqualifica a magistratura.

Ao permitir que a empresa Google Inc. — responsável pelo Youtube — mantenha no ar ataques contra símbolos ou denominações religiosas, ampara o ódio, a violência física, psicológica e moral aos fieis destes credos. A Justiça se torna cúmplice, quem diria, dos crimes praticados contra os terreiros, as mães e os pais de santo, o simbólico e a tradição oral de parte de nosso povo. Corretamente, o Ministério Público Federal interpôs recurso contra a decisão. Tem nosso apoio e da sociedade brasileira.

Para defender e proteger a liberdade religiosa, o Estado deve olhar para todas as crenças de igual forma. Não há no Brasil uma religião oficial, nosso povo convive com a umbanda e o candomblé há séculos. Cada um é livre para optar pela que melhor lhe permite dialogar com o intangível, com a força superior que lhe renova na procissão daquela fé. Para tanto, todos os credos podem e devem coexistir, sem ofender um ao outro, permitindo que atabaques, liras angelicais em altares católicos, coros pentecostais, neopentecostais e cantos kardecistas soem juntos uma música de paz.

¹Jandira Feghali, médica, é deputada federal (PCdoB/RJ) e  líder da bancada na Câmara.

Artigo, originalmente, publicado no Jornal do Brasil