A casa caiu e a República segue de pé
Num mundo em que a realidade é constantemente distorcida por fake news e desinformação, é sempre bom recorrer à origem das palavras para que elas não se percam em teses enganosas. “República”, por exemplo, vem do latim “res publica” e significa, literalmente, “coisa pública”. Ou seja, aquilo que é comum a todos os cidadãos. Mas determinados governantes nunca entenderam isto.
Hoje, vai ficando cada vez mais claro como Jair Bolsonaro e seu entorno, hoje envolvidos em diversas investigações criminosas, sempre trataram a “Res Publica”. Como exemplo, presentes de alto valor ofertados ao Brasil por nações estrangeiras. Estes itens pertencem ao acervo da República, não ao ocupante da Presidência que os recebe em gestos diplomáticos. Vendê-los ou escondê-los em benefício próprio é tão ilegal quanto imoral. E não há argumento que mude isso.
Não foram poucas as vezes, ao longo dos últimos anos, que os ocupantes do governo de extrema direita ultrapassaram a fronteira entre o público e o privado, com os objetivos de enriquecer ilicitamente e se perpetuar no poder às custas da nossa democracia. Já não restam dúvidas de que o ocorrido em 08 de Janeiro de 2023 foi uma tentativa de golpe de estado, com uso criminoso da máquina pública para alcançar seus objetivos.
O que as investigações da Polícia Federal, do Ministério Público, Tribunal de Contas da União e outros órgãos têm demonstrado é que as movimentações financeiras, milionárias e atípicas, fazem parte de um grande esquema de corrupção. Algo que não surpreende, pois alienaram empresas públicas em processos sabidamente eivados de irregularidades, denúncias na compra de vacinas para Covid, transações suspeitas envolvendo banco público, empresas em paraíso fiscal de propriedade do Ministro da Economia, compras públicas não explicadas como Viagra em grande quantidade e próteses penianas pelas FFAA, entre outras tantas do cartão corporativo de Bolsonaro.
O que tem importado muito às investigações, principalmente da CPMI que investiga o 8 de Janeiro, é a relação da movimentação de volumosos recursos e o financiamento dos atos antidemocráticos que culminaram com a invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal naquele dia infame. Uma violação que não pode, e não ficará, impune.
Este processo em busca de uma nova fase autoritária e de suspensão do Estado de direito foi fermentado, ao longo do (des)governo Bolsonaro, com recursos públicos. E nunca houve muita preocupação em esconder isso, talvez por uma confiança ilusória de que o golpe daria certo. Não deu, mas não alivia em nada os crimes cometidos, como a mobilização do aparato da Polícia Rodoviária Federal para prejudicar os eleitores de Lula no segundo turno das eleições, que levou o então diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, à prisão, ou a reunião, no Palácio do Planalto com embaixadores, que tornou o próprio ex-presidente inelegível por oito anos por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.
Por trás destes atos, havia uma inescrupulosa convicção de que, uma vez no poder, pode-se fazer o que bem entender. Até mesmo utilizar um avião da Força Aérea Brasileira para transportar, na encolha, bens públicos de alto valor para fora do país, como Bolsonaro fez no apagar das luzes de sua gestão corrupta. Este escandaloso caso das joias vendidas nos Estados Unidos, porém, é apenas um dos muitos crimes que podem levar Bolsonaro à prisão. Muito provavelmente, as pedras preciosas recebidas por baixo dos panos em outubro de 2022 em Teófilo Otoni teriam o mesmo destino.
No Congresso, a CPMI dos Atos Golpistas avança e mostra seriedade nas investigações. A quebra dos sigilos de Jair e Michelle Bolsonaro, autorizadas pelo ministro Alexandre de Moraes, e já requeridas na CPMI, certamente ajudarão nesta descoberta. As milhares de mensagens encontradas na lixeira (!) das caixas de e-mails de Mauro Cid e outros ajudantes de ordens do ex-presidente têm ajudado a montar este quebra-cabeça golpista. O depoimento do hacker Walter Delgatti trouxe informações que indicam a responsabilidade e comando do ex-presidente na construção do “golpe”, envolvendo o Ministério da Defesa e o Comando do Exército Brasileiro. Um absurdo inaceitável.
Bolsonaro utilizou a “Res Publica” para tentar se perpetuar no poder à força, agredir os outros poderes e desrespeitar seus mandatários, mesmo após ter sido rejeitado pela maioria da população nas urnas. Fez isso por meio de muita corrupção, uma corrupção endêmica, cujas extensões apenas começamos a vislumbrar.
Os terroristas que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em 08 de Janeiro já estão, em sua maioria, identificados e presos. Os articuladores, financiadores e mentores do processo golpista se encontram em processo acelerado de comprovação. É o que estamos buscando, semana após semana, na CPMI. O discurso moralista e antipolítico de Bolsonaro, que segue posando de “puro” e “incorruptível”, apesar de todas as evidências contrárias, está ruindo em praça pública.
As joias sauditas, as pedras preciosas mineiras, as várias tentativas de impedir as eleições e a posse de Lula – os fatos, enfim – mostram que o Brasil foi seguidamente assaltado e vilipendiado para beneficiar um único grupo. Mas não há “narrativa” possível capaz de blindar essa gente. Bolsonaro e companhia usaram a estrutura do Estado para tramar contra as urnas, conspirar contra a democracia, contrabandear patrimônio público, e tudo indica que ainda há muita sujeira debaixo do tapete a ser revelada. Mas, como diz o versículo escolhido pelos agentes da PF para batizar a operação que apura a venda dos presentes no exterior, “não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido”. A República Brasileira, democrática e cidadã, segue de pé.
*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro. É líder da bancada na Câmara e membro da CPMI dos Atos Golpistas. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.