Fundações estatais: uma nova entidade da administração pública indireta
O governo discute um novo modelo institucional para a prestação descentralizada dos serviços públicos: a fundação pública de direito privado. Para essas entidades, poderia ser designada a prestação de serviços que podem ser exercidos em concomitância com o setor privado e, ainda assim, excluídas aquelas atividades onde o Estado exerce poderes de fiscalização ou de controle.
A criação dessas fundações públicas com personalidade de direito privado depende, além da caracterização jurídica e legal desse instituto, da definição das áreas de atuação cabíveis para as fundações. Essa é uma exigência introduzida pela EC n.º 19. É necessária uma lei complementar para definir as áreas de atuação das entidades fundacionais (esse dispositivo não distingue as fundações públicas de direito público das de direito privado).
Essa discussão é premente, tanto na Bancada como no Partido, porque o governo enviou, desde o final de agosto passado, para tramitação na Câmara, dois projetos de lei sobre essas questões: um projeto de lei complementar, para definição das áreas de atuação das fundações públicas de direito privado (PLP n.º 92/2007), e um projeto de lei ordinária, para autorizar a criação da primeira fundação e para gestão do regime de previdência complementar dos servidores públicos federais (PL n.º 1.992/2007). Independentemente do mérito dessas proposições, há problemas em ambos.
OS PROJETOS DE LEI EM EXAME
O projeto de lei complementar, que fixa as áreas de atuação para as fundações de direito privado, estabelece áreas exclusivamente para a atuação das fundações de direito privado, como se não houvesse limites para as demais fundações públicas. Assim, não cumpre o mandamento do art. 37 da Constituição Federal. O inciso XIX desse artigo determina serem fixadas as áreas de atuação das fundações, sejam elas de direito público ou privado 1 . E, ainda, há o equivoco de determinar que as fundações poderão “ser instituídas por leis”, quando o texto constitucional é claro ao estabelecer rito diverso: as leis não instituem, mas apenas “autorizam a instituição” das fundações. Outro ponto falho no projeto, é a ausência completa de regulamentação desse novo ente jurídico. Nas discussões sobre essas fundações, sempre se postularam a necessidade e as vantagens dessa regulamentação.
Por sua vez, o projeto de lei que institui o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais autoriza a criação de fundação pública de direito privado. Ocorre que não há ainda uma lei complementar que tenha definido as áreas em que é possível haver a atuação e prestação de serviços públicos por meio de fundações. Ou seja, a administração não tem autorização para valer-se de entidades fundacionais na prestação de serviços de previdência complementar dos servidores. E, como a Constituição determina que uma lei complementar definirá essas áreas de atuação, uma lei ordinária não pode fazê-lo, pois seria usurpar uma competência própria da legislação complementar.
Em virtude desse entendimento sobre a impossibilidade de tramitação do PL, a Deputada Alice Portugal apresentou em 11 de setembro passado uma questão de ordem à Mesa da Câmara, solicitando sua devolução ao Poder Executivo, devido à evidente inconstitucionalidade 2.
AS FUNDAÇÕES PÚBLICAS DE DIREITO PRIVADO
O que se procura, com essas novas fundações, é instituir um novo tipo de entidade pública com maior grau de liberdade para a gestão e a administração, mantendo, ao mesmo tempo, controles governamental e social sobre ela. Assim, justifica-se a opção por uma entidade pública, que integre a administração indireta. Essa iniciativa se opõe ao espírito da reforma administrativa de FHC, que cometeu o erro de criar novas entidades totalmente privadas para a prestação de serviços públicos, desvinculadas do poder público e onde o controle social é mínimo.
Como exemplo dessas entidades criadas no processo de “despublicização” de FHC, podemos citar as fundações de apoio (Lei n.º 8.958/1994) utilizadas pelas instituições de ensino e pesquisa, as OSCIP (Lei n.º 9.637/1998) e as organizações sociais – OS (Lei n.º 9.790/1999). Não é por acaso que um expressivo volume de denúncias de irregularidades na aplicação de recursos públicos envolvem essas ONG. Essa reforma fracassou, porque a prestação de serviços públicos deve ser empreendida dentro da esfera pública, com controle e fiscalização do governo e da sociedade.
A proposta de fundação estatal pode dar nova forma à descentralização. Não pela privatização, mas por meio de entidades que não se desvinculam da esfera pública, criadas, estruturadas e controladas por órgãos e entidades públicas. De fato, essas fundações públicas, entidades com maior flexibilidade de gestão, mas dentro da estrutura do poder público, teriam características mistas. Públicas, porque constituídas pelo poder público; integrantes da respectiva administração indireta; vinculadas e subordinadas à entidade que as criou, compondo a sua estrutura hierárquica; observando princípios administrativos do setor público, especialmente aqueles contidos no texto constitucional, que envolvem até mesmo regras de aquisições e contratações, de prestações de contas e de controle. Privadas, porque submetidas a diversos regramentos próprios das entidades de direito privado, em sua gestão orçamentária, patrimonial, financeira e de pessoal, por exemplo. A legislação definirá os parâmetros desse modelo misto, um regime administrativo mínimo, com princípios da administração pública que deverão ser observados, e mecanismos de gestão privada. Após essas definições, leis da União, estados, DF e municípios poderão autorizar a constituição dessas fundações.
As regras hoje existentes (no Código Civil, por exemplo) aplicáveis às fundações privadas não são próprias para as fundações estatais. Um dos aspectos mais marcantes dessa diferenciação pode ser resumido pelo fato de a fundação privada, após constituída, desligar-se do instituidor e da sua vontade, passando a ter seu funcionamento ditado por regras próprias, pelos meios econômicos e financeiros proporcionados pelo seu patrimônio, ao contrário da fundação pública que se mantém vinculada e controlada pelo órgão que a instituiu. São necessárias regras específicas para impedir que essa desvinculação possa resultar na completa privatização da prestação desses serviços públicos dos interesses da própria administração pública. Um aspecto importante dessa diferenciação pode ser extraído do texto de Maria Sylvia Di Pietro: “Portanto, enquanto no direito privado a fundação adquire vida própria, independentemente da vontade do instituidor (que não poderá nem mesmo fiscalizar o cumprimento de sua manifestação de vontade, já que essa função foi confiada ao Ministério Público), a fundação instituída pelo Estado constitui instrumento de ação da Administração Pública, que se cria, mantém ou extingue na medida em que sua atividade se revelar adequada à consecução dos fins que, se são públicos, são também próprios do ente que a instituiu e que deles não pode dispor.” 3
É NECESSÁRIA UMA RESPOSTA À PRECARIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS HOJE EXISTENTE
O modelo de fundações estatais parece ter sido concebido para atender especificamente à prestação dos serviços de saúde. Hoje muitos outros setores da administração vêm nessa nova entidade como útil na melhoria de suas gestões, dando uma abrangência mais ampla para essas fundações. Nos últimos anos, toda a demanda por descentralização e flexibilidade de gestão vem sendo atendida por um processo desenfreado de criação de entidades privadas, quer sejam OSCIP ou OS ou mesmo de fundações de apoio, que vêm proliferando junto às instituições de ensino e pesquisa, saúde, educação, e, ainda, por uma presença maciça de terceirizações e contratações precárias tanto na União, quanto em estados e municípios.
Um estudo do Ministério da Saúde (2006) aponta que, somente considerando as contratações do Saúde da Família, em 70% dos municípios, os médicos sequer são recrutados mediante concurso público ou qualquer processo seletivo. Esse percentual é também alto para enfermeiros (62,5%), dentistas (61,3%), técnicos de enfermagem (42,9%) e para Agente Comunitário de Saúde (33,5%). Em boa parte, essas contratações irregulares são realizadas diretamente pelos órgãos públicos responsáveis pela prestação dos serviços de saúde, mas 10% dos municípios já utilizam entidades privadas (OSCIP, cooperativas, organizações sociais, outras entidades filantrópicas e até mesmo entidades privadas com fim lucrativo) para realizar essas contratações terceirizadas.
Esse quadro, além da enorme fragilidade e precarização das relações de trabalho para esses profissionais, é incompatível com a necessária qualidade dos serviços de saúde. Para se ter uma idéia, 60% dos municípios contratam médicos, enfermeiros e dentistas como pessoa física ou em modalidades de contratação temporária. Para esses profissionais, mesmo a contratação via CLT somente é expressiva (em patamares acima de 25%) nas regiões Sul e Sudeste. Nas regiões norte, nordeste e centro-oeste prevalecem as contratações temporárias (cerca de 50%) e as como pessoa física (entre 15% e 30%). Essas formas de contratação não se prestam a fixação de jornadas de trabalho ou de subordinação hierárquica, características próprias das relações de emprego. E, sem jornada de trabalho e sem relação hierárquica não é de se surpreender a falta de qualidade dos serviços prestados.
Outra característica desse quadro é a alta rotatividade desses profissionais. Uma contradição com a própria natureza dos trabalhos do Saúde da Família que demandam acompanhamento continuado e conhecimento da realidade local. Em cerca de 60% dos municípios, os contratos de médicos duram até 2 anos; esses percentuais relativamente a enfermeiros e odontólogos são igualmente altos, 40% e 34%, respectivamente. Nos municípios de até 50 mil habitantes a situação se agrava e o percentual onde se verificam esses contratos de curtíssima duração é maior ainda.
Esse quadro, de precariedade e alta rotatividade, foi construído porque uma grande expansão da prestação dos serviços de saúde, especialmente no Programa Saúde da Família, ocorreu posteriormente à EC n.º 19, que, ao acabar com a previsão de regime jurídico único, abriu imensas e descontroladas possibilidades para que fossem praticadas as mais variadas formas de contratação. É um resultado presumível de uma reforma que privilegiou o ajuste fiscal e não a eficiência, continuidade e eficácia da prestação dos serviços públicos.
Essa precarização nas relações de trabalho, que resultou em grandes prejuízos na prestação dos serviços, está presente em grande parte do serviço público. Nos hospitais universitários, por exemplo, contratações das mais diversas formas envolvem cerca de 46% da força de trabalho (dados do MEC relativos a 2005).
E essa situação pode ainda piorar se, à precariedade com alta rotatividade, acrescentarmos um cenário de privatização. Isto porque, em agosto último, o STF tomou três decisões que aparentemente se contraditam, mas que emparedam os gestores municipais e estaduais para a privatização da prestação dos serviços.
Na primeira (ADI 1.923), o STF considerou constitucionais aspectos da lei das organizações sociais, especialmente quanto a sua contratação sem licitação pelo poder público para prestação de serviços não-exclusivos do Estado, entendendo ser esse um modelo mais racional, dinâmico e eficiente da prestação por entidade privada desses serviços, “uma solução para a crise do Estado”, pelo voto vista de Gilmar Mendes.
Na segunda (ADI 2.135), o STF, ao suspender a vigência de modificações contidas na EC n.º 19, de 1998, restabeleceu o regime jurídico único como instrumento de contratação para a administração direta, autarquias e fundações públicas. Por ser uma decisão ainda liminar, não estão desconstituídas as contratações realizadas por meio dos mais diferenciados regimes, mas certamente está impedida de continuar utilizando esses mecanismos variados para novas contratações, substituições ou ampliações dos diversos serviços públicos.
Na terceira (ADI 1.864), o STF reconheceu a constitucionalidade de uma fundação pública de direito privado para a prestação de serviços na área de educação, pois “é compatível com a ordem constitucional, a prestação educacional do estado com a cooperação de entes de natureza jurídica privada”, pelo voto do Min. Joaquim Barbosa. A mesma decisão decretou a inconstitucionalidade de dispositivos contidos naquela lei que permitiam o exercício por essas fundações de tarefas típicas ou exclusivas de Estado (a responsabilidade política e financeira pela gestão total do sistema de educação)4.
O inteiro teor dessas decisões ainda não foi publicado, a leitura de cada voto permitirá conhecer um pouco mais sobre as implicações desses posicionamentos. No entanto, a situação imediata que se coloca para os gestores públicos é a restrição desse imenso leque de formatos de contratação, com o restabelecimento do Regime Jurídico Único. É muito provável que, pelos mais variados motivos, a imensa maioria dos municípios não esteja preparada para essa restrição, por falta de carreiras, estruturas remuneratórias etc. Vale ressaltar que desde 1995, alternativas vêm sendo colocadas à disposição do setor público para impedir a consolidação do RJU e das suas vantagens para a prestação dos serviços públicos, problemas que se avolumam desde a aprovação da LRF, que impede soluções e dificulta a realização de despesas, especialmente as com pessoal. Neste contexto, o caminho mais fácil, já convalidado pelo STF e colocado à disposição dos gestores municipais, será o da contratação de pessoal por meio dessas entidades privadas, organizações sociais e outras.
Nesse contexto, a proposta de criação de uma entidade como a fundação estatal, em que pesem todas as suas limitações, pode significar um freio na lógica privatizante introduzida pela reforma administrativa da EC 19 na gestão da coisa pública.
AS INCERTEZAS DO PROCESSO DE CRIAÇÃO DA NOVA ENTIDADE
A regulamentação da entidade fundação estatal, entretanto, se inicia cercada de incertezas. O texto original do caput do art. 39 da Constituição Federal, agora revigorado pela decisão do STF, determina a previsão de regime jurídico único para “administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas” (grifamos).
Há quem advogue que essa decisão significa o fim da possibilidade de contratações via CLT mesmo para as fundações estatais. Isto porque a EC n.º 19 estabeleceu, como parâmetros para as relações de pessoal no setor público, a CLT para as empresas estatais e de economia mista e a pluralidade de instrumentos para a administração direta, autárquica e fundacional. Essa pluralidade caiu, restando tão somente a forma do regime jurídico único.
Em sentido oposto, há quem argumente não existir óbice para as fundações públicas de direito privado contratarem pela CLT, desde que respeitada a execução de atividades típicas ou exclusivas de Estado, já que o texto constitucional explicita ser o RJU aplicável às “fundações públicas”. Certamente há um longo caminho a percorrer nessa discussão.5
Se a criação dessas fundações estatais pode significar um freio no processo de privatização da prestação dos serviços públicos, é preciso estabelecer certas regras que evitem que essas entidades não venham a se tornar apenas mais um paliativo momentâneo à gestão, servindo a longo prazo apenas para afastar os mecanismos de controle do setor público ou para mitigar direitos de servidores. Daí porque é fundamental a regulamentação a contento dessas fundações.
GESTÃO E FINANCIAMENTO: PROBLEMAS A ENFRENTAR NA LRF
Centrar a construção de um novo modelo de prestação de serviços públicos na discussão sobre a necessidade de maior autonomia de gestão revela dois pontos básicos. Primeiro, a percepção de que hoje a gestão dos serviços públicos é muito prejudicada por problemas determinados pelo regramento do setor público (como as normas orçamentárias, patrimoniais, contábeis e de pessoal). E que, em conseqüência, uma correta administração de um orçamento global e uma flexibilidade na gestão de pessoal, associadas a metas de resultado e supervisão estatal, podem melhorar a prestação desses serviços. Segundo, o entendimento de que a necessidade de uma entidade com maior autonomia não significa necessariamente privatização, pois é possível aliar essa autonomia com mecanismos públicos de controle e fiscalização.
Esses são pontos importantes que precisam ser reafirmados, mas a discussão precisa avançar para também envolver o debate sobre o financiamento da prestação dos serviços públicos. Nos textos divulgados pelo Governo sobre essas fundações, abstém-se de discussões como os relacionados a esses problemas de financiamento. Esse debate não se resume ao volume de recursos demandados pela necessária melhoria da prestação dos serviços públicos. É preciso enfrentar diversas questões relativas à Lei de Responsabilidade Fiscal.
A LRF, por meio dos instrumentos de contingenciamento dos gastos e os vários limites para as despesas de pessoal, afeta duplamente a prestação dos serviços públicos. Como essas questões podem interferir no funcionamento das fundações estatais?
A realização de despesas por uma fundação estatal não se confunde com gastos públicos. Portanto, limitar essas despesas não favorece a produção de resultados primários. Porém, se nenhuma iniciativa legislativa for tomada restarão constrangimentos para a ação dessas entidades. Os recursos da fundação estatal não poderão ser contingenciados, mas os da entidade supervisora contratante e que remunera a fundação pela prestação dos serviços públicos continuarão submetidos a contingenciamentos e a limites orçamentários. E, com certeza, esses limites contribuirão para a definição quantitativa e qualitativa dos serviços que serão prestados pela fundação e do valor a ser pago por essa contratação. Se, com as metas de superávit primário, os limites de gastos continuarem a constranger a realização de despesas com a prestação de serviços públicos, a descentralização ou a flexibilização não permitirão equacionar o adequado financiamento e reverter a precária situação dos serviços prestados à sociedade.
Nada leva a crer que um órgão público tenha mais recursos para despender na prestação de um serviço somente porque a sua execução se dá indiretamente por meio de uma fundação. Pode até haver mais eficácia no uso desses recursos, mas nada indica que haverá mais recursos (pelo menos enquanto forem mantidas as atuais exigências de metas de superávit primário). Não se pode permitir que o modelo de fundações estatais seja apenas um mecanismo para deslocar a pressão pela diminuta disponibilidade de recursos.
Assim, os contratos com essas fundações estatais têm que estar protegidos dos contingenciamentos, tal como acontece com as despesas decorrentes de obrigações legais. A lei que disciplina a fundação e estabelece os instrumentos do seu relacionamento com o órgão que a criou tem que proteger esses contratos, dando a eles o status de obrigação legal, o que impedirá o seu contingenciamento. É preciso também resguardar a implantação desse contrato, para que essa obrigação não seja interpretada como uma nova despesa obrigatória 6, mas apenas uma mudança no seu modo de execução.
Outros problemas decorrem da aplicação dos limites de pessoal. Segundo o art. 2º da LRF, à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios estão “compreendidos (…) as respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes”. Vê-se que não há diferença entre fundações públicas ou privadas. A LRF é explícita ainda ao determinar que até mesmo os valores de contratos que se referem a substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “outras despesas de pessoal” (art. 18, § 1º). Ao somar as despesas de pessoal dessas fundações com as já existentes nos Estados e Municípios, afastaríamos inúmeras situações onde os limites impostos pela LRF já estão restringindo absurdamente a prestação dos serviços públicos. Novamente demanda-se que a lei ao regulamentar essas fundações discipline essas questões.
OUTRAS QUESTÕES QUE PRECISAM SER ENFRENTADAS
Vários outros pontos precisam ser equacionados para que essa nova figura jurídica – a fundação estatal – possa cumprir o papel de ser um instrumento público para melhorar os índices de eficiência e resolutividade da prestação dos serviços públicos.
O primeiro, que demanda solução imediata, diz respeito à implantação do próprio modelo. Diz respeito a alocação de patrimônio público, imóveis e equipamentos, à disposição da fundação para prestação de serviços públicos. A questão não é simples porque esses bens precisam estar afetados (reservados) para a prestação dos serviços públicos, não podendo ser utilizados para quitação de débitos dessas entidades (ou seja, não poderão ser penhorados e arrestados). Nem os bens originalmente entregues à fundação em sua criação, nem outro que venha a ser constituído na titularidade dessa entidade e que esteja comprometido com a prestação dos serviços públicos.
Nos documentos elaborados pelo Ministério do Planejamento, fala-se em utilizar para a fundação estatal disposições do Código Civil próprios para empresas privadas detentoras de concessão pública. Salvo melhor juízo, essas disposições não podem ser aplicadas. A exploração de concessão pública se faz com o chamado “risco de negócio”, a empresa assume os riscos do seu empreendimento. Se a receita das respectivas tarifas não suportarem a realização da sua expectativa de lucros ou o seu próprio funcionamento a empresa concessionária está sujeita à cobrança judicial e à falência como qualquer outra. Esses princípios não se aplicam aos entes que prestam serviços públicos.
Sobre essa questão, é preciso atender ao princípio da continuidade da prestação dos serviços público. Criadas para a prestação de serviços públicos e não para a exploração da atividade econômica, geridas e vinculadas ao poder público, as fundações estatais estão sujeitas a outros regramentos. O patrimônio vinculado à prestação dos serviços possui proteção especial. “Se fosse possível às entidades da administração indireta (…) alienar livremente esses bens, ou se os mesmos pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção do serviço público”. E a garantia da continuidade da prestação dos serviços estende essa proteção até mesmo para empresas: “Por isso mesmo, o artigo 242 da Lei das S.A., que permite a penhora de bens das sociedades de economia mista, não pode ser aplicado no caso de entidade que preste serviço público” (grifado no original) 7.
Para a garantia dos interesses privados, inclusive os derivados dos direitos trabalhistas, continua Di Pietro, “o que tem sido defendido pela doutrina é a possibilidade de o Estado responder subsidiariamente quando se exaure o patrimônio [não afetado] da entidade; esse entendimento ficou consagrado em lei, no tocante às sociedades de economia mista, pois o art. 242, da lei das S.A., determina que elas ´não estão sujeitas à falência (…) e a pessoa jurídica que controla responde, subsidiariamente, pelas suas obrigações.”8 Se esse princípio, da responsabilidade do controlador, vale para a empresa de economia mista, muito mais valerá para a fundação pública.
Um segundo ponto a ser discutido diz respeito à força de trabalho dessas entidades. Tal como acontece com os trabalhadores das empresas estatais (públicas ou de economia mista), as fundações contratarão pessoal pelo regime da CLT. Ainda assim, como nas empresas públicas e nas sociedades de economia mista, não é um regime trabalhista puro. Empregados públicos são contratados mediante processo seletivo de provas e provas e títulos, a sua relação importa na observância do princípio da impessoalidade e, por exemplo, embora não haja estabilidade, não são permitidas demissões arbitrárias.
Mas, como ficaria a situação dos atuais servidores? Nos documentos do Ministério do Planejamento e do Ministério da Saúde, eles poderiam optar por ficarem à disposição das novas entidades. Há divergências nesses documentos sobre os efeitos jurídicos e econômicos dessa situação.
Para o Ministério da Saúde, esses servidores seriam cedidos, mantidos todos os direitos, podendo receber complementação de remuneração que venha a igualar os seus vencimentos aos salários pagos pela fundação. Nesse caso, haveria muitos problemas. Se o servidor continua a receber remuneração do órgão de origem, significa dizer que a fundação recebe, indiretamente, subsídio para pagamento de pessoal, já que o custo total ou parcial de sua folha de pagamentos é suportado por órgão público.
Caracterizada essa dependência, a fundação perderia todo o status que lhe permite autonomia orçamentária e financeira, pois ela seria enquadrada como uma entidade dependente, mantida pelo poder público. Em conseqüência, como determina a CF (art. 165, I e III) e a LRF (art. 2º, III), seu orçamento seria integrado ao Orçamento do ente ao qual fosse vinculado (União, Estado, DF e Municípios). A proposta do Ministério da Saúde é, pois, uma solução contraditória com o desejo de criar uma entidade pública com maior autonomia.
Por sua vez, a solução adotada pelo Ministério do Planejamento também tem problemas. Nesse caso, o servidor seria cedido à fundação sem ônus – para não caracter a dependência da fundação. A entidade assumiria o pagamento da remuneração desse servidor, como o de qualquer empregado por ela contratado. Nesse caso, a questão remanescente diz respeito aos direitos de aposentadoria e de evolução no cargo ou carreira desses servidores. Mesmo que considerássemos esse tempo de serviço como de efetivo exercício, faltaria ao servidor posto à disposição tempo de contribuição para a sua aposentadoria. Para suprir essa falta, a fundação, além dos seus encargos patronais típicos da relação celetista teria então que assumir encargos junto ao regime de previdência dos servidores, para que esse servidor não perdesse efetivamente o seu direito à aposentadoria. O problema é como fazer com que esse encargo extra não venha a onerar o custo do serviço prestado ao ente público.
Uma outra questão relativa aos empregados da fundação estatal refere-se à sua aposentadoria complementar . Os empregados estão sujeitos ao Regime Geral de Previdência Social. Os documentos sobre as fundações estatais estabelecem que essas entidades poderão contar com benefícios de aposentadoria complementar, nos moldes das empresas públicas. Como para aumentar a eficiência e reforçar a continuidade da prestação dos serviços públicos é preciso assegurar a permanência de bons profissionais, deve-se, conforme o caso, esse benefício. No entanto, grande parte dessas entidades não possuiria massa crítica de empregados para constituir um fundo próprio. Restaria a contratação no mercado de um fundo aberto. Seria inadmissível reservarmos ao mercado financeiro uma fatia tão grande de demanda. É preciso uma alternativa pública para atender a essa demanda.
PONTOS IMPORTANTES PARA O PROCESSO DE REGULAMENTAÇÃO
1. DAS ÁREAS DE ATUAÇÃO: é necessário expandir a regulamentação proposta no PLP 92 de modo a abranger também as fundações públicas, como manda a Constituição. Para tanto é preciso definir em que áreas da prestação dos serviços públicos é aceita a atuação intermediada por fundações e em quais dessas áreas a entidade pode ser uma fundação pública de direito privado;
2. DA VINCULAÇÃO E DO CONTROLE: é preciso estabelecer, no PLP, uma regra geral que determine como se processa a vinculação da fundação a um órgão público ou a uma entidade da administração indireta, em cuja área de competência se insere a sua atuação, sujeitando-se, nos termos do respectivo contrato de gestão, à supervisão do órgão ou entidade a que se vincule e como são exercidos os mecanismos normais de controle interno e externo;
3. DA DIREÇÃO E DO CONTROLE SOCIAL: é preciso definir, no PLP, quais são os órgãos colegiados de administração da fundação estatal e como eles são compostos, qual a sua competência e como funcionam, inclusive quanto ao conselho fiscal; como se compõe a diretoria executiva; como se aprovam os seus estatutos; como garantir a participação da sociedade nessas instâncias; qual a natureza da ocupação de todos esses postos, em que situações há remuneração e de que tipo e os seus limites;
4. DO REGIME ADMINISTRATIVO: definir, no PLP, qual é o regime administrativo mínimo a que estarão sujeitas as fundações estatais; que normas vão garantir o cumprimento de suas funções, a correta aplicação dos recursos públicos, o controle e a fiscalização estatal. Como se processam as aquisições de bens e a contratação de serviços por essas entidades; como elas selecionam empregados e como rescindem esses contratos; como se processam as negociações de natureza sindical com os seus trabalhadores, qual o grau de autonomia; como as fundações se submetem aos sistemas de controle interno e aos instrumentos de controle externo do Poder Legislativo e do Ministério Público; e como se relacionam essas entidades com as determinações da Lei de Responsabilidade Fiscal;
5. DO CONTRATO DE GESTÃO: definir, no PLP, como é o contrato de gestão dessas entidades com o poder público; qual é o conteúdo mínimo de cada contrato, quais são as metas de resultado a serem atingidas pela fundação estatal e os respectivos indicadores e prazos de execução; como se processam o desembolso dos recursos financeiros; quais são as penalidades aplicáveis aos dirigentes da fundação estatal; quais são os limites das autonomias administrativas concedidas à entidade quais são as condições para revisão, renovação, prorrogação e rescisão do contrato; quais os aspectos gerais da avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidades dos dirigentes das fundações; e quais são as obrigações dos signatários em relação às metas pactuadas; e, por fim, qual a sistemática de acompanhamento e avaliação do contrato;
6. DO PATRIMÔNIO E DA SUA GESTÃO: definir, no PLP, a proteção do patrimônio público cedido ou colocado à disposição da fundação estatal, determinando a sua afetação à prestação dos serviços públicos; estabelecer quais são os limites da gestão patrimonial, inclusive do adquirido pela fundação; em que medida podem ou não incidir garantias de terceiros sobre esse conjunto patrimonial e reafirmar a responsabilidade subsidiária do Estado;
7. DAS RECEITAS: que tipos de renda podem ter essas fundações, como garantir a prestação exclusivamente pública dos serviços gratuitos prestados pelo poder público; como impedir a realização de contratos com terceiros para realização de serviços de mesma natureza; como proteger os repasses do poder público relativos ao cumprimento do contrato com a fundação estatal;
8. DA GESTÃO CONTÁBIL E FINANCEIRA: como assegurar transparência e controle sobre o sistema contábil, de pessoal, de compras etc. de cada fundação;
9. DO TRATAMENTO TRIBUTÁRIO: que tributos são devidos e onde há imunidade própria das regras aplicáveis ao setor público, com relação às suas receitas, seu patrimônio, conforme o caso.
Parte da regulamentação proposta acima para as fundações estatais não tem o status de lei complementar. Tratam de disposições próprias da legislação ordinária. No entanto, vale ressaltar, conforme já decidido pelo STF, havendo matérias dessa natureza em lei complementar, esses dispositivos serão recepcionados pelo sistema jurídico como oriundos de lei ordinária. Em resumo, a lei complementar, que contém esses dispositivos, não é declarada injurídica por essa razão (recentemente isto ocorreu, por exemplo, na lei complementar do supersimples que continha disposições sobre a previdência social, sabidamente matéria da legislação ordinária). Ao assim proceder, privilegia-se economia processual legislativa, disciplinando um tema sobre os diversos ângulos, independentemente do tipo de norma demandado.
CONCLUSÃO
Não existem razões para que se negue a ampliação dos debates sobre essa reforma administrativa e ao processo de regulamentação das fundações públicas de direito privado. A concepção e regulamentação dessa nova entidade envolvem problemas complexos como os relativos à prestação dos serviços públicos; o papel do Estado nessa prestação e como ele exerce essas atividades; com qual estrutura jurídica e administrativa, e com que corpo de servidores. Somente um amplo debate permitirá não apenas ponderar os pontos positivos e negativos no modelo proposto, mas, principalmente, responder à questão fundamental, como melhorar a prestação dos serviços públicos, com eficácia e controle social, assegurando cidadania, com universalidade de acesso e o adequado financiamento.
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* Flávio Tonelli Vaz – assessor técnico. Os argumentos e opiniões expressos nesta nota são de responsabilidade exclusiva do assessor responsável, não coincidindo necessariamente com a opinião da bancada ou de qualquer de seus membros.
1. Tal era a vontade do legislador em distinguir as autarquias das fundações pelas suas áreas de atuação, que o art. 26 da EC n.º 19 determinava que “no prazo de dois anos desta Emenda, as entidades da administração indireta terão seus estatutos revistos quanto à respectiva natureza jurídica, tendo em vista a finalidade e as competências efetivamente executadas. Esses procedimentos não foram efetivados.
2. Até a presente data (25/setembro) a questão de ordem não havia sido respondida pela Presidência.
3. Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12ª edição. São Paulo. Atlas, 2000. p. 362 e 363
4. O STF pôde considerar constitucional a fundação estatal do Paraná, mesmo inexistindo lei complementar que disciplina as áreas de atuação das fundações, porque nos termos do art. 24, §§ 3º e 4º, da Constituição Federal, inexistindo lei federal dispondo sobre normas gerais, os estados podem legislar sobre a questão, mas a superveniência da norma federal suspende a eficácia das disposições estaduais em desacordo com a norma da União. O problema poderá renascer quando for aprovada a lei complementar. Para se ter uma idéia, o projeto de lei complementar que disciplina as áreas de atuação das fundações, enviado pelo Executivo, não permite a atuação dessas entidades nas áreas da educação. Se aprovada sem modificações, a criação da fundação paranaense e a sua existência enfrentarão graves problemas jurídicos.
5. Aparentemente, as contratações de agente comunitário de saúde e de agente de combate de endemias, mesmo depois da decisão do STF, se darão por regimes jurídicos diferenciados, já que há disposições específicas para essas situações previstas no art. 198 da Constituição Federal, §§ 4º e 5º.
6. A LRF tem muitas restrições para a implementação ou o aumento das despesas obrigatórias.
7. oc. p. 384
8. oc. p. 382
** VERSÃO PRELIMINAR EM 25/09/07 **