A MP 281: isenção de imposto de renda para investidores estrangeiros
A Medida Provisória promove duas isenções de imposto de renda sobre rendimentos recebidos por investidores estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliados no exterior) pela propriedade de títulos públicos federais ou de cotas de fundos de participação de capital de risco (os chamados venture capital). Ademais, estabelece isenção de Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF para a movimentação financeira relativa à aquisição de ações em emissão por oferta pública. Essa isenção aplica-se também apenas para investidores estrangeiros.
Cria-se, assim, um tratamento diferenciado entre investidores estrangeiros e nacionais (residentes no Brasil) nesses três tipos de operações, permanecendo os últimos a pagar à alíquota de 15% de imposto de renda nos dois primeiros casos e a CPMF de 0,38% sobre a movimentação financeira do último.
1. As isenções aos rendimentos de investidores estrangeiros no mercado financeiro nacional
O objetivo mais geral do Poder Executivo ao isentar os rendimentos de investidores estrangeiros é atrair mais capital para o mercado financeiro nacional.
No caso dos títulos públicos federais, o objetivo precípuo é facilitar o alongamento da dívida. Segundo estudo do Ministério da Fazenda “a medida provisória tenderia a acelerar a melhora da avaliação de risco do Brasil para o mais alto nível até hoje alcançado”. Essa conclusão está baseada na premissa de que investidores estrangeiros, especialmente os institucionais (fundos de pensão, seguradoras etc.) tendem a preferir títulos de vencimentos mais longos e também remunerados a taxas de juros fixas (prefixadas).
Segundo o Ministério da Fazenda, espera-se que as isenções provoquem a aceleração da transformação da composição da dívida pública federal, com prazos maiores e elevação da parcela dos títulos com taxas de juros prefixadas. Isso facilitaria ao país obter para sua dívida federal o grau de investimentos (“investment grade”), caso em que um papel oferece segurança suficiente para receber investimento de investidores institucionais. A expectativa não oficial é que o investment grade para nossos títulos seja alcançado em 2008.
Outro objetivo seria aumentar a competição no mercado de títulos do Tesouro, o que auxiliaria a redução do prêmio de risco na curva de juros de médio prazo da dívida. A redução do prêmio de risco dos títulos federais teria também impacto na emissão de títulos de renda fixa privados (como debêntures e bônus, por exemplo), servindo de parâmetro para os investidores e melhorando as condições de prazo e custos do financiamento das empresas brasileiras. Desse modo, manteria o mercado da dívida privada no Brasil com menos operações “off-shore” (no exterior, geralmente em paraísos fiscais), aumentando sua transparência.
Os investidores estrangeiros que terão o benefício podem ser individuais (pessoas físicas ou jurídicas) ou fundos de investimento exclusivo para investidores não-residentes (art. 1º, inciso II).
No caso de isenção de imposto de renda sobre rendimentos de aplicações em fundos de participação de capital de empresas emergentes (art. 3º), o objetivo seria estimular os investimentos em pesquisas tecnológicas, área onde as empresas emergentes costumam atuar.
Para evitar que o tratamento tributário diferenciado entre investidores nacionais e estrangeiros incentive brasileiros a migrarem seus capitais para fora com o fim de usufruir da isenção, a Medida Provisória determina que o benefício – tanto no caso dos títulos federais como dos fundos de participação em capitais – só pode ser usufruído por investidor que tenha residência ou domicílio em país que tribute rendimento de capital com alíquota máxima superior a 20% (art. 1º e art. 3º, § 1°, inciso III).
Também para evitar especulação e fraude da isenção com títulos federais por parte de estrangeiros e nacionais, veda-se a isenção a títulos adquiridos com compromisso de revenda assumido pelo comprador (art. 1º, inciso III). Isso evita que nos mercados organizados de títulos (utilizando bolsas e sistemas de custódia) possam acontecer operações compromissadas entre nacionais e estrangeiros, visando apenas o usufruto da isenção sobre o rendimento, caso em que títulos de propriedade de nacionais seriam vendidos a estrangeiros em datas de recebimento de rendimentos (cupom), já com compromisso de revenda, pelo comprador estrangeiro ao ex-titular nacional, 24 horas depois, apenas para usufruto da isenção (no caso, o investidor estrangeiro assumiria essa operação compromissada em troca de parte da isenção conseguida).
Segundo a Exposição de Motivos, as medidas propostas terão impacto fiscal total estimado em R$ 152,3 milhões em 2006, R$ 165,2 milhões em 2007 e R$ 179,2 milhões em 2008. Essa renúncia estimada pode ser decomposta em: a) redução da alíquota de Imposto de Renda incidente sobre rendimentos de não residentes em títulos públicos federais (renúncia de R$ 86,9 milhões em 2006, R$ 93,2 milhões em 2007 e R$ 100 milhões em 2008); b) redução da alíquota da CPMF no caso de ofertas públicas (R$ 45,9 milhões em 2006, R$ 50,6 milhões em 2007 e R$ 55,7 milhões em 2008); e c) redução da alíquota de Imposto de Renda incidente sobre rendimentos de não residentes em FIEE, FCFIP e FIP (R$ 19,5 milhões em 2006, R$ 21,4 milhões em 2007 e R$ 23,6 milhões em 2008). Segundo a Exposição de Motivos, a compensação por essas perdas de receita serão compensadas – conforme o disposto no inciso II do art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 2002 (Lei de Responsabilidade Fiscal) – “pelo aumento de receita já observado, resultante da ampliação da base de cálculo dos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal acima do previsto nas projeções iniciais de 2006”. A Exposição de Motivos ainda que “a adequação das receitas projetadas ao disposto nesta MP será realizada quando da edição do decreto de programação orçamentária e financeira”.
Por fim, a isenção de CPMF nas operações de aquisição de ações emitidas em oferta pública e com registro na Comissão de Valores Mobiliários, feitas em mercado de balcão (fora das bolsas), pretende incentivar o mercado de capitais, permitindo às empresas com capital aberto maior facilidade na captação de recursos para investimento no exterior.
2. Os riscos de instabilidade que o incentivo ao capital estrangeiro no refinanciamento da dívida mobiliária interna pode trazer
Abordaremos em seguida as críticas feitas à Medida Provisória, que abrangem três aspectos de mérito: os efeitos macroeconômicos deletérios sobre a estabilidade do refinanciamento da dívida e sobre a taxa de câmbio da moeda nacional; os riscos de burla e fraude para percepção indevida da isenção tributária; e as implicações políticas decorrentes da maior dependência do refinanciamento da dívida de capitais forâneos.
2.1. A instabilidade macroeconômica
A primeira objeção ao incentivo concedido pela Medida Provisória à participação de investidores estrangeiros no financiamento da dívida pública interna é de natureza macroeconômica.
Em primeiro lugar, vejamos o problema do aumento da instabilidade que a maior presença de investidores estrangeiros, nas condições atuais, pode trazer ao mercado de títulos públicos.
As condições favoráveis de aceitação de papéis do Tesouro brasileiro (títulos soberanos) por investidores estrangeiros estão ligadas, a curto prazo, às atuais condições de liquidez extraordinária do mercado internacional. Nada garante até quando essas condições permanecerão favoráveis. Períodos de maior liquidez, com a elevação do interesse de investidores por ativos de países periféricos de alta rentabilidade, são sucedidos por outros de liquidez apertada, com baixa demanda e fuga de ativos de maior risco, como é o caso de nossos títulos (os títulos soberanos do Brasil são considerados pelas agências de rating como papéis de especulação e não de investimento – investment grade).
Nos últimos dez anos o Brasil conseguiu fazer a rolagem de sua dívida interna sem quebra de continuidade – exceto no episódio da campanha presidencial de 2002, cujo alto custo em instabilidade cambial foi notavelmente amargo. A demanda internacional para títulos considerados especulativos (com cotação abaixo de investment grade), é sabidamente volátil. Quanto maior for a participação desse tipo de investimento no financiamento dos títulos federais, mais instável será sua rolagem (refinanciamento). Abrir o mercado da dívida significará maximizar o risco de crises de rolagem a cada vez que mudar a direção da liquidez internacional. O México, em 1994, provou desse veneno, quando os fundos de pensão americanos abandonaram em massa o país, fazendo a rolagem da dívida entrar em colapso e zerando as reservas de divisas do país. Esse não é um exemplo a seguir.
Outra questão a ser considerada é a prática de alavancagem por parte do investidor estrangeiro. A alavancagem se dá quando o investidor em títulos – aproveitando-se do diferencial entre o rendimento esperado e a taxa de empréstimo bancário – oferece sua carteira como garantia para levantamento de recursos junto a bancos, voltando a aplicá-los em novos títulos, multiplicando assim sua carteira em relação ao capital próprio inicialmente investido. Essa prática tem o condão de potencializar a instabilidade do mercado em que ocorre, já que a decisão do investidor de entrar ou sair de determinado título tem seu impacto sobre a demanda e a oferta multiplicados pelo grau de alavancagem possível.
Como a alavancagem é feita mediante financiamento de bancos pertencentes a sistemas financeiros de outros países, a regulamentação nacional nada pode fazer contra esse tipo de operação. A alavancagem será um dos maiores fatores a ampliar a instabilidade no mercado da dívida.
Na atual situação de classificação como investimento especulativo de que goza nosso título soberano – técnicos do Ministério da Fazenda esperam, de maneira otimista, que o grau de investimento só será alcançado em 2008 – quem pode assegurar que os investidores especulativos que serão atraídos pelo isenção – pelo menos nos próximos dois anos – atuarão no sentido de melhorar as condições de refinanciamento da dívida? Como controlar também a alavancagem realizada por estrangeiros para multiplicar ganhos? Até que ponto os investidores estrangeiros não imitarão o comportamento de curto prazo do investidor local como aconteceu na entrada dos bancos estrangeiros no sistema financeiro nacional?
Essas questões podem reduzir em muito a expectativa de melhora no perfil de custos e de vencimento da dívida pública decorrente da entrada de recursos estrangeiros, mesmo que se desconsidere o risco de longo prazo das inevitáveis reversões desses fluxos no mercado.
Nesse caso, o aumento da participação do capital estrangeiro, induzido pela isenção concedida, pode aumentar o risco de instabilidade do refinanciamento sem trazer a desejada melhora no perfil da dívida. Assim, a iniciativa da Medida Provisória, além de não atingir o objetivo pretendido de melhorar o perfil da dívida pode, ainda, de modo contraproducente, comprometer a promoção do nossos títulos soberanos a investment grade.
Em segundo lugar, há também o problema da taxa de câmbio. No curto prazo, incentivar a entrada de dólares nos leilões da dívida aumentará a pressão de valorização do Real. Pagando uma taxa que é mais do dobro das taxas dos outros papéis soberanos da periferia, é bem possível imaginar o tamanho da demanda que nossos títulos gerarão. Não sendo possível a compra dos títulos diretamente em dólar (o que impactaria apenas as reservas), a conversão em reais decorrente dessa entrada de divisas seria um enorme fator de valorização da moeda nacional, mesmo que o fluxo fosse de apenas alguns bilhões de dólares ao mês, um valor muito modesto para o volume de rolagem de nossa dívida – média aproximada de R$ 30 bilhões ao mês, em 2005. Se o BC mantivesse o esforço que vem fazendo hoje no sentido de evitar uma maior valorização do Real, a conseqüência seria um aumento ainda maior do custo fiscal dessa operação, trazendo um resultado fiscal negativo, absolutamente contraproducente para os propalados ganhos de custos sobre a dívida.
A longo prazo, a volatilidade desses fluxos reforçará ainda mais a instabilidade da nossa taxa de câmbio, ampliando o papel dos fluxos financeiros em sua formação e prejudicando o comércio externo. A solução proposta, na verdade, significa reduzir ainda mais o quase nenhum poder que o governo e o Banco Central parecem ter sobre a formação da taxa de câmbio da moeda nacional.
2.2. Os riscos de burla e fraude
A isenção fiscal concedida, criando um diferencial de ganhos entre investidores no mesmo mercado, implica sempre em um risco de burla ou fraude à regulamentação estabelecida.
Um das principais fontes de burla poderá ser a prática de ampliar o volume de rendimentos isentos pela prática de operações de curtíssimo prazo entre investidores isentos (estrangeiros) e não isentos (nacionais). Embora a Medida Provisória vede a isenção a investidor estrangeiro sobre papéis com compromisso de recompra (como explicado no item 1), isso não elimina a burla, pois apenas a coíbe quanto ao recebimento de cupom (juros pagos antes da data do resgate) e, mesmo, assim, nos mercados organizados. Resta ainda a possibilidade da burla ser realizada quando da liquidação dos títulos sem cupom (que pagam a remuneração no resgate).
Nesse caso, o investidor estrangeiro só adquiriria títulos às vésperas de seu resgate, auferindo o benefício fiscal sem necessidade de carregar o título por toda sua maturação. O ganho assim auferido será evidentemente repartido com o titular anterior, já adiantado como prêmio no preço do título adquirido.
Essa possibilidade de burla é significativa, haja vista a quantidade de títulos de curto prazo – sem cupom – na composição da dívida mobiliária federal (R$ 253 bilhões de LTN, em janeiro último, um quarto da dívida mobiliária em poder do público).
3. O risco político: maior dependência dos fluxos de capitais externos
Em conseqüência desses problemas econômicos, a iniciativa implica também em um problema político. Ao ampliar o papel do capital estrangeiro no mercado de títulos públicos, o resultado – imediato e de longo prazo – será a redução ainda maior da liberdade do Estado brasileiro em estabelecer políticas econômicas em consonância com os interesses estratégicos de nossa economia, do mercado interno ou de elevação do bem estar do povo.
Ao elevar os riscos de instabilidade no financiamento da dívida interna e na taxa de câmbio o país não está apenas se expondo a graves crises econômicas, estará também aumentando o poder político de forças econômicas externas tanto sobre as decisões da política econômica como sobre o rumo do Estado e da nação. Essa é uma conseqüência inevitável, não sendo lícito a ninguém desconsiderá-la.
4. Conclusão
O que pretende atingir o Poder Executivo com essa Medida Provisória – a melhoria do perfil da dívida pública – é de grande importância, mas o instrumento proposto parece-nos equivocado. Não há garantias do incentivo oferecido alcançar os resultados almejados. É até possível que, ao contrário do pretendido, os investidores estrangeiros passem a se comportar como os nacionais – maximizando taxas e minimizando prazos de vencimento. Essa, afinal, foi a experiência concreta do país quando, a partir de 1996, o Banco Central achou que incentivando a entrada de bancos estrangeiros no mercado financeiro iria aumentar a concorrência e reduzir o monopólio sobre a oferta de crédito e de serviços bancários.
Nossa argumentação contra o incentivo da elevação de capitais externos na dívida pública não exclui a possibilidade de que a curto prazo as taxas de juro nominais possam de fato se reduzirem – em conseqüência da expectativa de queda na taxa de inflação decorrente da valorização do Real. O problema de fundo é que esse efeito de curto prazo pode ter um elevado preço em termos do considerável risco de instabilidade que o fluxo de capitais externos pode trazer à economia nacional, tornando inevitável a elevação da taxa de juros e todo o esforço inútil.
Na verdade, o problema que o Tesouro Nacional enfrenta para reduzir as taxas de juros é a forte concentração do mercado credor da dívida, monopolizado nas mãos de algumas poucas dezenas de grandes investidores (principalmente bancos que, em janeiro de 2006, detinham R$ 312,7 bilhões de títulos em tesouraria, um terço da dívida mobiliária em poder do público). Ao abrir para os investidores externos, os gestores da dívida pública sonham inutilmente em quebrar esse monopólio. Porém, esse não é o caminho. Além de caro, seu resultado é incerto e o custo político da perda da escassa autonomia que se tem sobre a política monetária e fiscal é grande.
Melhor faria o governo se adotasse medidas que impedissem a interligação entre os títulos da dívida pública e o mercado de câmbio e o seu livre fluxo para o exterior. Um exemplo prático dessa iniciativa seria o controle sobre a entrada de capitais de curto prazo – estabelecendo prazo mínimo de um ou dois anos para sua permanência no país – e adotar restrições para a remessa de patrimônio de residentes no Brasil para o exterior. Essas são medidas comumente adotadas por muitos países e não representam nenhuma “quebra de contrato”. Ao contrário da pretendida abertura ainda maior para os capitais especulativos forâneos, essas últimas medidas defensivas de controle sobre os fluxos de capital diminuiriam, de fato, o monopólio dos credores da dívida sobre a determinação de nossa taxa básica de juros.
No entanto, se a isenção do imposto de renda para os títulos públicos não se sustenta, tal não acontece com o disposto nos demais artigos. A isenção de imposto de renda para os fundos de participação de capitais de risco pode de fato se revelar uma alternativa válida de financiar o desenvolvimento tecnológico. Assim também a extensão da isenção da CPMF para as operações de emissão de ações pode ser um instrumento que incentive o investimento empresarial e – provavelmente – amplie a capacidade produtiva da economia. Nesses dois casos, devido o limitado volume de recursos que provavelmente gerará, o risco de criar instabilidade macroeconômica é sensivelmente reduzida.
Desse modo, parece-nos que seja possível aprovar a Medida Provisória, desde que dela sejam excluídos os dispositivos referentes à isenção de rendimentos de títulos públicos (ou seja, o art. 1º). Mas caso essa supressão não aconteça, o mais recomendável – tendo em vista os riscos de instabilidade macroeconômica – é posicionar-se contra a Medida Provisória como um todo.