Um pseudo-documentário chocou o Brasil no início dos anos 2000, com a “revelação” de uma prática dita “comum” entre indígenas no país: o infanticídio. O vídeo transmite a falsa impressão de que se trata do registro documental do sepultamento de duas crianças vivas, já crescidas, por índios da etnia Suruwaha. Bastou isso para o estrago ser feito e desencadear uma série de reportagens preconceituosas pela imprensa nacional e reforçar a apresentação do Projeto de Lei 1057/07, que criminaliza “práticas tradicionais nocivas em sociedades indígenas”. Parado há anos na Câmara, o projeto foi ressuscitado no início do segundo semestre, após pressão de missionários evangélicos – os mesmo responsáveis pela gravação do falso documentário. Com argumentos apelativos e sem respaldo antropológico, o texto foi aprovado na quarta-feira (26), na Câmara dos Deputados, sem consultar povos afetados e sob protestos de instituições indigenistas e de parlamentares progressistas. A matéria segue agora para o Senado.

Contrária à proposta, a líder do PCdoB, deputada Jandira Feghali (RJ), chamou a atenção dos parlamentares para a importância de se respeitar as crenças e os costumes. “Não estamos aqui defendendo assassinato, estamos defendendo a vida dessas crianças por meio de uma mediação cultural. Do jeito que está aqui, vamos colocar a etnia inteira na cadeia, obrigando todos a denunciar o risco de algo acontecer”, disse durante a votação da matéria.

O projeto prevê que órgãos responsáveis pela política indigenista, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), deverão usar de todos os meios para proteger crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas de práticas que atentem contra a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica. Entre essas práticas, o texto lista infanticídio ou homicídio, abuso sexual ou estupro individual ou coletivo, escravidão, tortura, abandono de vulneráveis e violência doméstica.

A antropóloga Rita Segato, professora da Universidade de Brasília, afirma que o projeto “ultracriminaliza” o infanticídio, pois inclui na acusação não somente os autores diretos do ato, mas todas suas testemunhas reais ou potenciais. “Significa que toda a aldeia em que a ação venha a ocorrer e outras testemunhas como a Funai, os agentes de saúde, o antropólogo e outros possíveis visitantes poderão ser acusados”, descreve em artigo. “O projeto cria uma imagem absolutamente distorcida da relação entre os índios e suas crianças. Essa lei ofusca a realidade e declara os índios bárbaros, selvagens, assassinos. É muito semelhante à acusação, comum em tempos passados, de que os comunistas comiam criancinhas”, compara.

Para a Funai, o texto aprovado está embasado em argumentos que não correspondem à realidade vivida nas aldeias indígenas e “reproduzem estereótipos preconceituosos de que os indígenas seriam mais violentos, menos esclarecidos e mais propensos a atentar contra a vida”. Em nota técnica que circulou durante a votação da matéria na Câmara, a fundação ressaltou que qualquer iniciativa do Estado brasileiro que vise proteger e assegurar a qualidade de vida aos povos indígenas, deve passar pela efetivação de políticas públicas de saúde e de cidadania, bem como pelo diálogo com esses povos”.

Não existem dados sistematizados no Brasil sobre a prática de infanticídio em aldeias indígenas, mas etnólogos consideram o ato praticamente inexistente no Brasil. Na verdade, a literatura etnológica indica que as crianças indígenas gozam de atenção da comunidade e os pais acompanham cuidadosamente as fases de desenvolvimento dos filhos, observando ritos de passagem e buscando diuturnamente o bem-estar de crianças e jovens.

O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) reforçou a ideia de que o projeto é inócuo. “Em grande parte dos casos não existem mais determinadas condutas culturais desses povos. Eu considero que, para impedir um erro, nós devemos aprofundar o debate, aprofundar o diálogo.”

O PL, desde sua apresentação, é contestado por antropólogos que atuam em comunidades indígenas. Em sua tese de mestrado, a antropóloga Marianna Holanda sugere que as formas que cada povo desenvolve para resolver seus conflitos internos devem ser respeitadas. “O projeto impõe uma categoria jurídica ocidental a uma diversidade de povos, desrespeitando suas diferenças e especificidades”, afirma em seu texto.

Para Marianna, não cabe falar em infanticídio indígena. “Diante do que chamamos juridicamente de infanticídio, não cabe falar em infanticídio indígena. O que há nessas aldeias são estratégias reprodutivas pensadas em prol da comunidade, e não de indivíduos isolados. Só um número muito reduzido de crianças acaba sendo submetido a elas. E são crianças com problemas que, mais tarde, impossibilitarão qualquer tipo de interação social.”

Segundo a antropóloga, para os índios, sem socialização a criança jamais atingirá a humanidade plena. Por isso, ela dedicou uma parte do seu trabalho para entender como se constitui a noção de humanidade entre os indígenas. “Esse é um dos pontos centrais do estudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida e humano é diferente da percepção dos índios. Um bebê indígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações sociais que estabelece”, explica, em entrevista à UnB Agência.

Agora, a expectativa é que no Senado, o debate possa ser qualificado e que o projeto acabe arquivado.