As ameaças à democracia na era digital e as resoluções do TSE
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou, no último dia 27 de fevereiro, uma série de resoluções para organizar o processo eleitoral deste ano nos mais de 5500 municípios brasileiros. Essas determinações, muitas vezes com textos áridos e pouco compreensíveis à população, são importantes porque tratam de minúcias da pré-campanha e da campanha, dispondo sobre temas como a distribuição do financiamento para partidos e candidaturas e o que pode ou não ser feito em termos de propaganda política.
Nesse sentido, a Resolução 23.732, proposta pela ministra-relatora Carmen Lúcia e aprovada pelo pleno do Tribunal, tem grande significação não só jurídica, mas também política. Parte da norma em questão trata sobre a propaganda eleitoral, enfrentando temas complexos e atuais, com o uso de Inteligência Artificial para comunicação com o eleitorado, a disseminação maliciosa de conteúdo desinformativo e as chamadas deep fake, manipulações digitais capazes de substituir ou modificar imagens e vozes para deturpar a realidade.
No conjunto, sem dúvida, a resolução cumpre o papel proativo de defender o processo democrático das ações que buscam incidir na disputa de forma desleal e, muitas vezes, criminosa, através de ataques orquestrados a candidaturas, tendo por base conteúdo sabidamente falso ou editado de maneira a deturpar o fato ou, agora mais essa, criar uma realidade paralela para ludibriar o eleitor, ampliar rejeições e até despertar o ódio político em parcelas da sociedade.
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Sobre esses temas, o TSE foi assertivo! Quanto à utilização de recursos de Inteligência Artificial, de maneira lícita, para fins de propaganda, a determinação é que, em qualquer caso, seja explicitado pelo anunciante o uso do recurso. Também fica proibido recorrer a “chatbots” (espécie de robô que conversa virtualmente com os usuários) para simular comunicação pessoal entre o candidato e o eleitor – ou seja, o eleitor terá que ser avisado de maneira clara que interage com um robô e não com uma pessoa.
Atento à experiência internacional recente – lembremos das eleições na Argentina e do robô falsificando uma ligação do presidente Biden nas primárias americanas -, o Tribunal proibiu totalmente o uso de deep fake, recursos de áudio/vídeo capazes de criar, alterar ou substituir imagens e vozes de pessoas. A norma também veda a criação, utilização e disseminação de fake news nas eleições (“conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados”, na definição da Resolução).
No caso de deep fake e fake news, a utilização passa a configurar para o candidato abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, cujas penalidades são a cassação do registro do postulante ou do mandato, caso eleito, além de outras sanções previstas em lei.
Sem dúvida, é uma ação firme da Corte para afastar esse tipo de fraude do pleito. O problema é que, quem recorre a esse tipo criminoso de expediente, em geral o faz por meio de milícias digitais e não pela campanha formal. Ou seja, permanece o desafio de coibir as práticas.
Conhecendo a dimensão do desafio, o TSE não hesitou em responsabilizar solidariamente as plataformas digitais, civil e administrativamente, caso não removam imediatamente conteúdos que possam ser considerados antidemocráticos, que atinjam a integridade do processo eleitoral, incitem a violência contra membros da Justiça Eleitoral, promovam discurso de ódio, racismo, homofobia, xenofobia ou ideologias extremistas, como o nazismo e o fascismo. Como não há um gatilho a gerar a responsabilização, pressupõe que as empresas ocupem a posição de monitorar e decidir prontamente sobre isso.
Em certa medida, o Tribunal empresta em sua Resolução alguns dos conceitos debatidos e inseridos no Projeto de Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, o PL 2630, do qual sou relator. No entanto, em minha avaliação, a determinação acaba por implicar em poderes de moderação excessivamente amplos às plataformas, o que pode também acarretar riscos.
Isso porque ainda faltam as fundações para uma democracia resiliente na era digital, construção que cabe principalmente ao Legislativo. A dieta informacional online e a integridade das plataformas, bem como os riscos e benefícios de sistemas de IA, afetam nosso pacto social para muito além da esfera eleitoral.
Não há como deixar de observar que o Tribunal Superior Eleitoral foi respeitoso, ainda que resvale na atividade legislativa, ao editar uma norma regulamentadora que aborda e se inspira em questões em debate no Parlamento, seja no PL 2630, no caso das fake news, seja no PL 2338/23, sobre Inteligência Artificial. Por outro lado, é um movimento incompleto para a própria integridade eleitoral e para a nossa democracia, pois é em tais iniciativas legislativas que são forjados direitos e obrigações de forma mais sistemática para tratar as questões de modo abrangente.
Mas não há que se esperar outra coisa quando o Congresso se omite ou a divisão política impõe uma dilação inadmissível na tomada de decisões inadiáveis à vida nacional.
Espero que a Resolução do TSE incentive as lideranças políticas a construírem o ambiente de diálogo e concórdia necessário para reafirmar o papel do Congresso Nacional e enfrentar esses temas, que são globais e inescapáveis para as democracias contemporâneas. Afinal, como dizia um personagem de nossa teledramaturgia, “o tempo urge e a Sapucaí é grande”.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB de São Paulo e relator do PL 2630/2020, o PL das Fake News. Artigo publicado, originalmente, na Carta Capital.