A CPMI do Golpe começa a puxar o fio da meada
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instalada no dia 25 de maio para investigar os atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 começou a ouvir seus primeiros depoentes na semana que passou. E ficou mais claro para todos nós qual deverá ser o tom das sessões no Congresso: enquanto parlamentares do bloco democrático fazem uma investigação séria, em busca do fio condutor que culminou no ataque simultâneo aos Três Poderes naquela data, a pauta dos bolsonaristas é negar a conexão dos fatos que demonstram um planejamento golpista no país e afirmar que o 8 de Janeiro, apesar da gravidade, da violência contra a democracia e marcante na história da República, foi um fato isolado.
Não há pudor em distorcer os fatos até que caibam em suas “teses” – como a de que o próprio governo Lula seria o responsável pelas invasões, tese aliás que não vai até a esquina. Muitas vezes baixam o nível, tentam tumultuar, desqualificar e agredir quem pensa diferente. Sem surpresa!
Desde janeiro, os bolsonaristas tentam emplacar uma “narrativa” que apague o que passaram os últimos quatro anos fazendo, falando, sonhando e tramando: perpetrar um golpe de estado. Pela primeira vez, um relatório da ONU acusa o governo Bolsonaro de ameaçar a democracia brasileira. Não é a opinião de um país ou do nosso campo. É da instituição multilateral composta por 193 estados membros.
No plano de trabalho apresentado pela relatora da CPMI, Eliziane Gama, e aprovado por maioria no colegiado da comissão, o recorte temporal a ser investigado inclui o período mais recente do golpismo: vai de 30 de outubro de 2022, data do segundo turno das eleições que consagraram a vitória de Lula, até o fatídico 8 de Janeiro, quando as hordas bolsonaristas profanaram as casas do Executivo, Legislativo e Judiciário. É preciso demonstrar que o 8 de Janeiro faz parte de um processo planejado e executado, mas sem sucesso, pela ação pronta do governo federal que decretou intervenção na segurança pública do DF, pela clara posição das instituições democráticas como o Parlamento brasileiro e a Suprema Corte, a frente ampla de forças políticas, governadores, prefeitos das mais diversas correntes e as declarações de chefes de Estado de todos os Continentes a favor da democracia brasileira e do resultado das urnas. A mídia brasileira, grande, média e pequena, com raras exceções, não conseguiu usar outra expressão que não fosse “manifestações/atentados golpistas”.
Bolsonaro e seus seguidores tentaram. Este foi o momento mais visível da ação violenta da conspiração, e nossa lupa está sobre ele com muito rigor. Não vimos sustentação institucional, social, nacional ou internacional para um golpe, mas poderíamos fazer um exercício mínimo. E, se eles tivessem sido bem sucedidos, muito provavelmente este artigo não seria escrito ou publicado. Também não haveria, a esta altura, um Parlamento para investigar os atos criminosos contra a Democracia, nem um TSE imparcial para analisar se Bolsonaro cometeu abuso de poder político durante o processo eleitoral (crime que, aliás, pode torná-lo inelegível).
Imaginou o que seria o Brasil hoje? Lembra da “ponta da praia”? Da vontade de “fuzilar a petralhada”? De não demarcar “um centímetro” de terras indígenas e quilombolas? Do desejo de “dar uma p**” na boca de um jornalista? Para dizer o mínimo e não expressar aqui as demais consequências para o povo, para os seus direitos e para o país. Não esqueçamos os crimes em quatro anos de governo e o seu ídolo, torturador, protagonista do livro de cabeceira.
Porque estivemos tão perto de (re)viver este pesadelo, o que aconteceu em 8 de Janeiro não pode ser esquecido jamais. E isso significa voltar a 30 de outubro, quando o então comandante da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Marques, protagonizou o primeiro ato deste processo infame. Foi dele a ordem para multiplicar blitzes e bloqueios em estradas e rodovias do Nordeste, para impedir eleitores de votar (em Lula, claro). O plano seguia um mapeamento sugerido por um “boletim de inteligência” do Ministério da Justiça, então sob o comando de Anderson Torres, que hoje se encontra preso. Queriam causar uma alta de abstenções nas localidades onde Lula havia tido mais votos no primeiro turno para beneficiar Bolsonaro.
Estes personagens e muitos mais constavam dos mais de mil pedidos de requerimentos de convocações feitos para a CPMI. Destes, 285 foram colocados em votação. Até agora, foram aprovados 40 pedidos para ouvir os “supostos envolvidos”, alguns já presos, entre eles o já citado Anderson Torres, o tenente-coronel Mauro Cid, os generais Heleno e Braga Netto, o ex-ministro do GSI Gonçalves Dias e o coronel Jean Lawand Júnior.
Mas o depoente que inaugurou os testemunhos foi Silvinei Marques, na terça-feira 20. Foi pego em mentiras e contradições ao tentar se dissociar da trama golpista da qual participou alegremente em 30 de outubro e depois, quando não agiu por semanas para desbloquear estradas tomadas por golpistas fantasiados de “patriotas”. Mas que espécie de patriota plantaria uma bomba no Aeroporto de Brasília na véspera de Natal? Por incompetência ou sorte do país, falhou o atentado terrorista planejado em Brasília por George Washington de Oliveira e outros dois bolsonaristas (um ainda foragido) num dos acampamentos golpistas montados na frente de quartéis militares de todo o país.
George dirigiu do Pará até Brasília com um arsenal bélico no porta-malas pouco antes do dia 24 de dezembro. Na última quinta-feira (22/06), como depoente na CPMI, ele me confessou que frequentou o acampamento golpista diversas vezes. Também afirmou que se considera um “patriota”. Mas, perguntado se tem Bolsonaro como referência política, disse a frase que repetiria inúmeras outras vezes em seu depoimento: “permanecerei calado”.
George Washington é o exemplo acabado do mal que o fanatismo faz a um homem. Está preso, abandonado por todos os que pensam como ele (um deputado bolsonarista apenas lamentou o “exagero na dose”) e, ainda assim, não consegue sair da realidade paralela em que caiu ao consumir altas doses de fake news e discursos de ódio. Um homem que estragou a própria vida por uma causa que é, no fim das contas, criminosa. Na raiz deste fanatismo, estão os ataques à ciência, à cultura, às escolas, à imprensa, à democracia. Esta é a guerra cultural que precisamos vencer com urgência. E o sucesso desta CPMI representará um passo muito importante nesta direção.
*Jandira Feghali é deputada federal pelo Rio e líder do PCdoB na Câmara dos Deputados. Artigo originariamente publicado pela Revista Carta Capital.