A razão da mudança na regra da poupança está relacionada à redução da taxa Selic, que remunera boa parte dos títulos federais e serve de taxa básica de referência para todas as demais taxas de juros do país. Alega-se ser a mudança necessária para permitir que o Banco Central reduza ainda mais a taxa básica em sua próxima reunião, no final de abril.

O problema é que, com uma Selic mais baixa, a poupança, graças à isenção de imposto de renda, remuneraria melhor o aplicador do que os fundos de renda fixa, ocasionando uma corrida desses para a poupança. A corrida prejudicaria a rolagem da própria dívida pública, cujos títulos são, em parte, adquiridos pelos fundos, e também criaria um risco futuro para estabilidade bancária. A instabilidade pode ocorrer devido ao descasamento entre os depósitos da poupança, que são disponíveis à vista, e os empréstimos imobiliários feitos com seus recursos, que são de longo prazo. Caso haja nova inversão, no futuro, da vantagem remuneratória dos fundos de investimento frente a poupança, isso ocasionaria grandes saques difíceis de serem cobertos.

O debate sobre a redução da remuneração vem se dando em torno do dilema entre proteger o pequeno poupador, depositante típico da poupança, ou agir para evitar um problema imediato no financiamento da dívida pública, capaz de causar dificuldades em toda a economia.

Mas, antes de se debater tal dilema, deve-se perguntar por que um país remunera aplicações financeiras com taxas de juros menores que aquela paga à dívida mais segura que nele existe: a dívida pública federal.

O sistema financeiro de cabeça para baixo

A taxa básica de juros de uma economia refere-se àquela paga pelos títulos públicos, que constituem, teoricamente, a aplicação mais segura e de maior liquidez em qualquer país que possua um sistema financeiro organizado. Em conseqüência, todas as demais aplicações financeiras privadas – em virtude de seu risco maior – pagam juros maiores. Exceto no Brasil.

Tal fato extraordinário parece não causar espécie a ninguém, em especial aos economistas, geralmente zelosos de suas teorias. A rigor, o que acontece no mercado financeiro brasileiro é um nonsense. A aplicação de maior rentabilidade é o título público e, a partir daí, seguem com remuneração decrescente as demais: certificados de depósito interbancário (CDI) – a mais rentável aplicação privada, uma operação de curto prazo entre bancos – certificado de depósito bancário (CDB), debêntures e outros títulos privados, a caderneta de poupança e, em último, a poupança compulsória do FGTS. Muitas vezes, títulos privados de maior prazo praticam taxas de juros flutuantes vinculados ao CDI, do tipo 90% do CDI ou 95% do CDI.

Apenas em sentido contrário, na fixação dos juros ativos, quando as instituições financeiras financiam as empresas e as pessoas, a lógica teórica se impõe: nenhuma operação rende taxa de juros ativa menor que a da taxa Selic. As exceções são os financiamentos bancados pelo Estado, como as operações oficiais de crédito agrícola e parte dos empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que pagam a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), juros subsidiados decorrentes de decisões políticas extramercados.

Desse modo, o sistema financeiro tem na taxa Selic um piso para suas taxas de empréstimo e um teto para as taxas de juros que paga aos seus aplicadores (as taxas passivas).

Essa é uma das razões pela qual a taxa básica de juros é permanentemente alta no Brasil desde pelo menos o início dos anos noventa e porque é tão difícil reduzi-la a níveis internacionais. De fato, caso a taxa Selic venha a ser reduzida para 9%, por exemplo, um CDB de primeira linha teria um rendimento líquido não maior que 6% ao ano, menor que o rendimento líquido da poupança, mesmo com uma TR igual a zero; a uma Selic de 7% a taxa líquida do CDB estaria próxima a 4,5%, empatada com a taxa inflacionária esperada; e com uma Selic abaixo de 7% os ganhos reais de todas as aplicações financeiras seriam negativos.

A singular posição da taxa básica no Brasil implica que sua redução abaixo dos 10% comprime fortemente os rendimentos das aplicações que suportam parte do sistema financeiro, inclusive a caderneta de poupança. No limite, próximo à taxa de 7%, a Selic destruiria todos os demais investimentos de renda fixa, levando o sistema bancário ao caos. Esquematicamente, nessa situação limite, só restariam três soluções para os recursos dos investidores: ir para a especulação com mercadorias do tipo commodity; fugir para o exterior; ou ser absorvida  totalmente pela dívida pública. Todas as três desastrosas para a estabilidade e o funcionamento da economia. Assim, a alta taxa básica de juros não é apenas uma questão de política monetária, mas um problema estrutural da economia brasileira.

Como chegamos a essa esdrúxula situação

A construção estrutural de uma taxa de juros de dívida pública que serve também de teto às taxa de juros passivas do sistema financeiro deve-se, com certeza, a muitas causas. Uma parte delas ainda pendente de estudos. Porém, defendo ser sua causa mais central a estratégia de desenvolvimento do capitalismo brasileiro tendo por base um sistema financeiro próprio, inspirada pelo modelo anglo-saxão. Essa estratégia foi iniciada na reforma do sistema financeiro de 1964, tomando um impulso maior e definitivo nas reformas do Banco Central e da regulamentação dos mercados financeiros a partir de 1989-93.

A construção de um sistema financeiro espelhado principalmente no americano seguiu-o, grosso modo, sempre com uma defasagem de uma década em relação aos EUA, seja pelas resistências políticas internas de toda a ordem seja pelas dificuldades de colocar em práticas regulações e instituições baseadas em novos paradigmas teóricos. Assim, a reforma do sistema financeiro de 1964, reproduzia a idéia predominante já nos anos  cinqüenta de que um sistema eficiente deveria ser bem regulado, razão pela qual se iniciou pela constituição do Banco Central. No início dos anos noventa, as reformas espelhavam o quadro teórico e a prática bancária iniciada na década anterior nos EUA, reduzindo as barreiras entre os mercados financeiros. A idéia da auto-regulação e do câmbio flutuante só nos atingiu, ainda imperfeitamente, após a crise de 1998-99.

Essa estratégia centrava-se na idéia de que o desenvolvimento da economia deveria ter como base e ponto de partida a constituição de um mercado e um sistema financeiro forte e sofisticado, tendo como modelo o sistema americano. A estratégia baseava-se na afirmação de que só um sistema financeiro forte seria capaz de alocar eficientemente os recursos de financiamento demandado pelo desenvolvimento, o que era garantido pela racionalidade de seus agentes na intermediação entre poupador e tomador.

Falta-nos aqui espaço para considerações mais detalhadas. Porém, pode-se apontar como suas diretrizes principais o fortalecimento e a concentração dos bancos comerciais, a  constituição de bancos múltiplos – nossa versão dos bancos de investimentos americanos – e a criação de uma grande dívida mobiliária federal que servisse de lastro ao sistema. Tentou-se fazer no Brasil, em algumas décadas, o que a Grã-Bretanha e os EUA fizeram em mais de século.

Os principais instrumentos de construção do sistema financeiro idealizado foram a criação de uma dívida pública mobiliária e a manutenção de uma taxa de juros real elevada. A dívida pública do Estado brasileiro foi uma criação artificial iniciada nos anos setenta, pois o este sempre se financiou pela via tributária e pela expansão de crédito dos bancos oficiais. A dívida mobiliária federal sempre teve a função de lastrear o sistema financeiro, como ativo garantido e como referencial da remuneração financeira. Não tendo servido em nenhum momento para financiar o Estado, sua expansão, especialmente a partir de 1994, se deu exclusivamente pela elevada taxa de juros que pagava, permanentemente transformada em novos títulos, ou seja, foi auto-expansiva. Logrou-se também constituir um grande, sofisticado e relativamente sólido sistema bancário e um ainda pequeno mercado de capitais. Mas o sistema bancário, desde os anos oitenta nunca financiou adequadamente a economia nacional. Como sempre foi possível para os bancos lucrar com os títulos federais, eles só emprestam a juros extorsivos, só atendendo negócios muito lucrativos ou, por uma seleção adversa – a devedores incautos ou irresponsáveis, condenados à inadimplência.

As próprias instituições financeiras foram ativas no processo, mantendo pressão altista na taxa de juros e o reduzido prazo de vencimento dos títulos da dívida pública por meio de seu virtual monopólio de compra e a crescente concentração bancária. Os bancos detêm um terço dos títulos federais diretamente em suas tesourarias e administram para terceiros, fundos de renda fixa e outros, quase a totalidade dos dois terços restantes. E apenas seis bancos, hoje, detém 85% dos ativos do sistema bancário.

O resultado desse processo acelerado e artificial – especialmente engendrado a partir da zeragem da dívida mobiliária por Collor em 1990 – terminou criando o sistema financeiro forte e sofisticado, mas disfuncional, e uma dívida pública que nunca financiou a atividade estatal. A dívida pública constituiu-se apenas em um pesado e permanente encargo, que subsidia há  décadas as instituições financeiras. O sonho neoliberal das reformas criou esses dois monstrengos, distorcendo nosso sistema e mercado financeiros em uma nova estrutura limitante do crescimento da economia nacional.

Como sairmos disso e o que fazer com a poupança, agora

Não basta querer mudar a política monetária, há de se empreender novamente uma reforma do sistema financeiro com a amplitude da feita em 1964. O que implica também em desconstruir boa parte do sistema atual, para reconstruir o sistema em uma base funcional, redimensionando o endividamento público e reconfigurando os bancos comerciais e de fomento.

É tarefa que exige, além de determinação governamental, uma grande base política de apoio. Não é tarefa para se fazer em condições normais e cotidianas de um país. Talvez a atual crise mundial venha a criar as condições necessárias para iniciar essa reforma financeira. Não tanto por facilitar a coalizão de forças políticas necessárias, mas talvez por inviabilizar a continuidade do sistema que aí está.
Por enquanto, cabe apenas remendar o sistema, adequando-o precariamente à nova realidade da crise. A mudança da remuneração da poupança é uma delas. Nesse caso, o melhor é evitar causar prejuízo aos pequenos poupadores, reduzindo sua taxa de juros.

O problema da caderneta não está nos pequenos poupadores, mas nos grandes que, sendo uma minoria de correntistas, detêm a maior parcela do depósito total. De imediato, então, basta que se elimine a isenção de imposto de renda sobre rendimentos maiores que certo montante de depósito por pessoa física – cem mil reais, por exemplo. Isso é bastante para eliminar a corrida, não produzindo um esvaziamento significativo dos fundos de renda fixa e minimizando um eventual desequilíbrio futuro nas instituições financeiras de poupança.

* Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política, e assessor na Câmara dos Deputados. Em 25 de março de 2009.