Governo discute modificações para o trabalho
Os jornais de hoje (29/04) divulgam propostas elaboradas pelo Ministério Extraordinário de Assuntos estratégicos (Min. Mangabeira Unger) para reformatar as relações de trabalho e que foram discutidas com as centrais sindicais desde setembro de 2007.
As medidas envolvem medidas de combate à informalidade, aumento da participação dos trabalhadores na repartição dos lucros e iniciativas para melhorar as relações sindicais entre capital e trabalho.
Oferecemos o texto, na íntegra, para discussão.
Governo e centrais querem alterar relações trabalhistas
Cristiano Romero, de Brasília
29/04/2008
Ruy Baron/ Valor
Mangabeira Unger: “Não se trata de um amontoado de propostas, mas de um modelo institucional coerente”
Depois de uma reunião que durou quase três horas, na noite de quinta-feira, com a participação dos dirigentes de seis centrais sindicais, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, bateram o martelo numa agenda mínima para promover “mudanças radicais” nas relações entre capital e trabalho no Brasil. As transformações visam reduzir drasticamente a informalidade no mercado de trabalho, reverter a queda da participação dos salários na renda nacional e reformar o regime sindical.
A partir do diagnóstico de que o regime trabalhista criado nos anos 40 do século passado por Getúlio Vargas, embora tenha trazido avanços à sua época, tornou-se obsoleto ao deixar a maioria dos trabalhadores fora de sua proteção, Mangabeira e sua equipe vêm debatendo o tema há oito meses com as centrais, sindicatos patronais e grandes empresários. O objetivo é encontrar pontos de convergência e, a partir daí, formular propostas e enviá-las ao Congresso até o fim deste ano.
Da reunião com as centrais (CUT, Força Sindical, UGT, CGTB, NCST e CTB), da qual também participaram os ministros Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência da República) e Luiz Marinho (Previdência Social), além de um representante do Ministério do Trabalho, surgiram, segundo Mangabeira, as primeiras convergências. Elas constam do documento intitulado “Diretrizes a Respeito da Reconstrução das Relações entre o Trabalho e o Capital no Brasil”, que será divulgado oficialmente hoje.
O documento, antecipado ao Valor com exclusividade, traz as primeiras propostas de mudanças. “Não se trata de um amontoado de propostas, mas de um modelo institucional coerente. Houve um grau surpreendente de convergência. É o retrato esperançoso de uma negociação”, observa Mangabeira Unger. “Nunca foi nosso objetivo construir unanimidades. O propósito final é definir um ideário objetivo que oriente a agenda legislativa.”
O ministro, que é professor licenciado da Universidade de Harvard, diz que a economia brasileira corre o risco de ficar presa entre economias de trabalho barato e aqueles de tecnologia e produtividade elevadas. O risco é agravado pelo fato de economias de trabalho barato, como a China, estarem se transformando, em alguns setores, em economias de alta produtividade. O interesse do país, sustenta Mangabeira, é valorizar o trabalho e o aumento da produtividade.
O regime trabalhista, criado por Vargas e instituído pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é um obstáculo a esses dois objetivos. Ele nunca incluiu a maioria dos trabalhadores em seu sistema de proteção, uma vez que a maior parte da População Econômica Ativa (PEA) atua no mercado informal. “A maioria não só está fora, como está também condenada à indignidade, à injustiça e à insegurança do trabalho informal. Essa é uma calamidade brasileira – econômica, social e moral”, critica o ministro. “O modelo institucional estabelecido das relações entre o capital e o trabalho, em vez de ser parte da solução, revelou-se ser parte do problema.”
No debate atual, lembra o ministro, há dois discursos que acabam paralisando tentativas de mudança. Um é o da “flexibilização” dos direitos trabalhistas, defendido pelos empresários, interessados em reduzir os custos de produção. O outro é o discurso do “direito adquirido”, a defesa renhida, diz Mangabeira, do regime da CLT como baluarte contra a campanha para flexibilizar direitos.
Esse discurso protege os trabalhadores que estão dentro do sistema, mas ignora a grande maioria que está fora dele. “O problema está em descobrir como soerguer os assalariados que estão fora dos setores intensivos em capital sem minar a posição dos que estão dentro desses setores”, diz o ministro.
Para enfrentar o problema, governo e centrais sindicais concordaram que é preciso resgatar a maioria dos trabalhadores da economia informal. Para fazer isso, é preciso desonerar a folha de salários. Mangabeira conta que não foi fácil encontrar uma convergência de como se fazer isso. Mesmo depois de concluída a reunião da última quinta-feira, havia centrais contrárias ao resultado do encontro.
Atualmente, as empresas recolhem ao Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS), a título de financiamento da Previdência Social, o equivalente a 20% da folha de pessoal. A idéia é acabar com essa contribuição, criando em seu lugar uma outra fonte para o INSS. Inicialmente, os sindicalistas defenderam, nas reuniões com Mangabeira, a substituição por um tributo que incida sobre o faturamento das empresas. O problema é que ela causa distorções numa economia que pretende estar na vanguarda da produtividade mundial.
“Nossas longas discussões consideraram preocupantes os dois maiores defeitos dessa fórmula. O primeiro é a incidência desigual sobre as empresas – maior sobre as intensivas em capital. Essas empresas empregam relativamente menos, mas representam vanguarda na escalada da produtividade. O segundo defeito é compartilhar aspectos de um imposto declaratório e ser, portanto, suscetível de evasão”, revela o ministro.
Mangabeira diz que o regime trabalhista que inibe o acúmulo de tecnologia e a aceleração da inovação tecnológica pode beneficiar parte da força de trabalho a curto prazo, mas prejudica os trabalhadores como um todo a médio e longo prazo. “São os trabalhadores os maiores beneficiários do aumento da produtividade (desde que fortalecidos os mecanismos institucionais para que se possam apropriar de parte do excedente econômico) e as maiores vítimas de estancamento na elevação da produtividade.”
O debate com as centrais evoluiu para uma “solução radical”: o financiamento da Previdência Social por meio de impostos gerais. O plano é fazer isso por meio de imposto que distorça menos os preços relativos. Chegou-se a falar na CPMF, mas o tributo foi extinto no fim do ano passado. Depois, na criação de um imposto sobre transações financeiras. No fim, convergiu-se para o IVA federal, a ser instituído pela reforma tributária em discussão no Congresso Nacional – se o IVA não for criado, a contribuição patronal sobre folha será substituída por outro imposto geral já existente. “IVA é, por definição, o tributo mais neutro”, sustenta Mangabeira.
O ministro diz que as mudanças no financiamento da Previdência não serão negociadas no bojo da reforma tributária, mas de forma paralela. Do contrário, adverte, elas não acontecerão. Ele defende também que a nova fonte de financiamento da Previdência assegure o mesmo volume de recursos recebidos hoje pelo INSS. É preciso assegurar, defende Mangabeira, que o progresso na organização do trabalho não sirva de pretexto para um retrocesso no ordenamento da Previdência.
Outra desoneração da folha de pessoal, negociada com as centrais, diz respeito ao salário-educação e às contribuições das empresas para o Sistema S. Ambos sairão da folha e passarão a ser financiados também por impostos gerais. Já os benefícios diretos dos trabalhadores, como 13º salário e férias remuneradas, ficarão na folha. “Ao menos, por enquanto”, assinala o ministro.
Um outro desafio, segundo Mangabeira, é reverter a queda dos salários na renda nacional, um fenômeno que ocorre, no Brasil, na contramão da tendência internacional, há meio século. “As limitações no aumento da produtividade do trabalho não bastam para explicar esse resultado. Há muito tempo que a subida do salário real no Brasil costuma ficar aquém dos avanços da produtividade”, explica.
Para mudar esse quadro, diz o ministro, não basta adotar políticas que buscam elevar o salário nominal, como o governo Lula vem fazendo com o salário mínimo. Segundo ele, iniciativas como essa são facilmente anuladas pela inflação e por políticas monetárias comprometidas em manter a estabilidade da moeda. Por isso, ele defende a adoção de medidas institucionais. “São as instituições que ajudam a determinar a fatia do bolo”, aposta.
As propostas debatidas com as centrais prevêem um conjunto de medidas para as três faixas salariais, sem a definição, ainda, dos valores das mesmas (ver quadro). Entre as iniciativas a serem tomadas, está a proteção legal dos trabalhadores temporários e terceirizados. “No Brasil, como em todo mundo, eles representam parcela crescente da força de trabalho. É a mudança dos paradigmas de produção, e não apenas o enfraquecimento da posição institucional dos trabalhadores, o que também explica essa tendência”, justifica o ministro.
Mangabeira diz que a busca de convergência com as centrais e os empresários – “as minorias organizadas”, segundo suas palavras – é a única forma de avançar em prol da modernização das relações entre capital e trabalho no país. “A minoria dos trabalhadores organizada vai sempre conseguir barrar a flexibilização de seus direitos”, avisa.
Nas discussões que o governo vem promovendo, fica claro que os dois lados terão que ceder em algumas áreas. O ministro reconhece as dificuldades políticas da empreitada. “Os dirigentes sindicais e os líderes empresariais consultados não menosprezam os dissabores dessa reorientação. A maior parte, porém, vê nela a maneira mais direta, clara e corajosa de resolver problema que ameaça nosso futuro nacional”, assegura.
Mangabeira diz, no entanto, que o governo, na busca da “superação do regime de Vargas”, não atuará como “secretário” das elites sindicalistas e patronais. Na falta de consenso, debaterá sua proposta com a sociedade e o Congresso. Na reunião de quinta-feira passada, conta, o mais empolgado com o avanços contidos nas propostas era o presidente Lula.
Leia a íntegra do documento no texto abaixo. |
Diretrizes a respeito da reconstrução das relações entre o trabalho e o capital no Brasil (texto na íntegra)
Roberto Mangabeira Unger
29/04/2008
Natureza e objetivo dessa minuta
Em setembro de 2007, por orientação do Presidente da República, iniciei discussões com as cinco maiores centrais sindicais (CUT, Força Sindical, UGT, CGTB, NCST e, desde dezembro, CTB), a respeito das possíveis diretrizes de um acordo nacional que guie a reforma das relações entre o trabalho e o capital no Brasil. Essa iniciativa nasceu da convicção (aprofundada em seguida nessa minuta) de que a reconstrução de nosso modelo de desenvolvimento no rumo da ampliação de oportunidades, do crescimento econômico socialmente includente e da escalada de produtividade exige revisão abrangente e ousada das relações entre o trabalho e o capital. Não temos experiência de tal esforço desde o período de Getúlio Vargas, quando se formou a legislação ainda em vigor.
As discussões com as centrais – ora com elas separadamente, ora com elas em conjunto – prosseguiram à luz de um objetivo prático: buscar não a unanimidade, mas uma convergência preponderante de opinião. O espírito foi o de enfrentar sem rodeios os problemas mais difíceis, saindo do plano das abstrações ideológicas e das palavras de ordem para o das preocupações concretas e pontuais. Três foram os temas escolhidos como fulcros da discussão: a diminuição da informalidade, a reversão da queda da participação dos salários na renda nacional e a reforma do regime sindical.
Os entendimentos com as centrais sindicais já começam a ser complementados por encontros com lideranças empresariais: tanto com pequenos grupos de grandes empresários como com dirigentes das confederações patronais. Se o projeto articulado puder contar também com o apoio de parte expressiva do empresariado terá galgado passo importante para ser abraçado pela nação e para traduzir-se em lei.
O propósito final é definir ideário objetivo que oriente agenda legislativa. Alguns dos pontos da convergência retratada aqui (sobretudo no quesito do regime sindical) já estão em andamento no Congresso Nacional. Esse texto os resgata e os reinterpreta como fragmentos de projeto transformador mais abrangente.
Sei que algo das concordâncias aparentes de agora tenderá a se dissipar à medida que as diretrizes forem colocadas em debate público e as idéias se aproximarem do momento de sua efetivação. Confio, porém, que muito da concordância sobreviverá a essa mudança. Pode parecer surpreendente que temas tão controvertidos – e tão marcados por mistura potencialmente explosiva de interesses e de ideologias – se prestem a convergência tão ampla e pormenorizada quanto a esboçada nesse memorando. A oportunidade para construir tal convergência não resulta, porém, do trabalho de agora; decorre de uma decantação – dentro do movimento sindical e no país como um todo – ao longo de muitos anos. As propostas resumidas nessa minuta apenas explicitam o desfecho dessa experiência anterior.
Premissas dessa iniciativa
O esforço aqui retratado nasce da convicção de que nossa economia corre o risco de ficar presa, no mundo, entre economias de trabalho barato e economias de tecnologia (e de produtividade) altas. Risco agravado porque algumas das economias de trabalho barato se estão tornando, setorialmente, economias de produtividade alta. Um dos nossos maiores interesses nacionais é escapar dessa prensa do lado alto -de valorização do trabalho e de escalada de produtividade -, não do lado baixo, de produtividade deprimida e salários aviltados. Não temos futuro como uma China com menos gente.
Por outro lado, o regime de trabalho criado pelo regime de Getúlio Vargas padece, apesar de seus muitos efeitos benéficos para os trabalhadores ao longo da segunda metade do século passado, de dois defeitos graves, que exigem reparo. O primeiro e o mais fundamental defeito é que nunca incluiu, e ainda não inclui, a maioria dos trabalhadores brasileiros. É, e sempre foi, regime para a minoria. A maioria não só está fora como está também condenada à indignidade, à injustiça e à insegurança do trabalho informal. A esperança de que a maioria fosse aos poucos incorporada a suas regras se foi aos poucos esvaindo. E o modelo institucional estabelecido das relações entre o capital e o trabalho, em vez de ser parte da solução, revelou-se ser parte do problema.
O segundo defeito é que, mesmo para essa minoria, o regime vigente assegura representação sindical oficial sem garantir representação vigorosa, independente e, portanto, legítima. Um sistema que exalta a unicidade sindical evoluiu paradoxalmente para proliferação exuberante de sindicatos – muitos representativos de fato e, muitos outros, imposturas de representação.
O enfraquecimento da representação é uma vulnerabilidade e uma ameaça. A exclusão da maioria é um veneno.
Nenhum dos dois discursos predominantes no Brasil de hoje a respeito das relações entre trabalho e capital basta para alcançar os objetivos sugeridos por essas constatações. De um lado, há o discurso da ” flexibilização ” das relações de trabalho, identificado pelos trabalhadores como eufemismo para descrever a corrosão de seus direitos. De outro lado, há o discurso do direito adquirido: a defesa renhida do regime da CLT como baluarte contra a campanha para flexibilizar. Pode, a curto prazo, ajudar a resguardar dos trabalhadores entrincheirados nas partes mais capitalizadas da economia. Não aproveita, porém, os outros – a grande maioria. O problema está em descobrir como soerguer os assalariados que estão fora dos setores intensivos em capital sem minar a posição dos que estão dentro desses setores.
Para alcançar tais finalidades, não basta defender a estrutura legal existente. É preciso inovar nessa estrutura, fazendo obra de inovação institucional – como fez, em outras circunstâncias, com outros meios e com outros propósitos, Getúlio Vargas.
Resgatar a maioria da economia informal
Difícil dizer que parte de força de trabalho atua na economia informal, trabalhando sem carteira assinada, sem a proteção ou a disciplina da lei. As ambiguidades da classificação associam-se às incertezas da contagem para dificultar a conclusão. Não há dúvida, porém, de tratar-se de perto da metade da população economicamente ativa do país. Essa é uma calamidade brasileira – econômica, social e moral. Resgatar essa metade da informalidade, com toda a dimensão e rapidez possíveis, é prioridade de qualquer projeto que pretenda reconstruir as relações entre trabalho e capital no Brasil sob o signo da reconciliação entre o desenvolvimento e a justica.
São os seguintes os componentes da convergência que começa a formar-se a respeito desse tema.
1. Como preliminar, entendemos que parte da informalidade tem a ver com fraude do regime legal e tributário. E fraude precisa ser combatida agressivamente, à parte qualquer mudança na estrutura de custos, de incentivos e de oportunidades para empregar e para trabalhar.
2. Há dois grandes aspectos do problema da informalidade: política econômica e desoneração da folha de salários.
Na política econômica, é preciso distinguir entre política macroeconômica – sobretudo monetária – e política microeconômica – a ” política industrial ” voltada para a multidão de pequenos empreendimentos que vivem perto da fronteira entre formalidade e informalidade.
Os participantes em nossas discussões concordam que uma política monetária que mantém o juro real acima da taxa média de retorno dos negócios é prejudicial a qualquer esforço para tirar a maioria da informalidade, ainda que se justifique por outras razões. Igualmente concordam, porém, que o trato dessa questão está fora de nossa jurisdição e só inibiria o avanço da convergência que estamos construindo.
Há, porém, toda a razão para conceber uma política industrial includente, voltada para o mundo dos empreendimentos emergentes, como parte da estratégia para diminuir a informalidade. Os elementos de tal política estão sendo discutidas com outros interlocutures. São três os meios que a definem.
O primeiro elemento – de aconselhamento gerencial, de formação de quadros e de práticas – costuma ser, no mundo todo, o mais difícil. É, porém, a área em que o Brasil mais avançou, por conta do papel histórico do Sebrae. Ao Sebrae, porém, faltam braço financeiro e braço tecnológico. Daí os outros dois elementos dessa política industrial.
O segundo elemento é o financeiro: trabalhar com o Banco do Brasil, com a Caixa Econômica Federal, com o BNDES, com o Banco do Nordeste e com o Banco da Amazônia para ampliar, rapida e dramaticamente, o crédito ao pequeno produtor. É objetivo que exige baixa de custos, e, portanto, padronização de práticas, nos empréstimos.
O terceiro elemento é o tecnológico: atuar junto aos Ministérios de Ciência e Tecnologia e de Indústria e Comércio para organizar uma Empraba industrial, vocacionada para ajudar os emprendimentos emergentes. Essa Embrapa industrial não precisa (nem deve) ser empresa unitária, como a própria Embrapa. Deve ser composta por rede que aglomere e amplie as instituições federais e estaduais que já adaptam e transferem tecnologia – e perícia tecnológica -às pequenas empresas. O significado dessa iniciativa pode ser enorme em economia caracterizada como a nossa pela avassaladora predominância de empresas de pequena escala. O empreendedorismo desse mundo demonstra misteriosa vitalidade em meio a condições inóspitas. Equipada com os instrumentos de que precisa, pode revelar-se formidável dínamo de crescimento.
3. Nossas discussões a respeito da diminuição da informalidade focalizaram sobretudo o outro lado da questão: a desoneração da folha de salários. Se não se deve exagerar a eficácia da desoneração para diminuir a informalidade (já que há outras causas e outros constrangimentos), também não se lhe deve negar importância. Parece mais plausível avaliá-la como fator de peso substancial ainda que incerto.
Três grandes camadas de ônus incidem hoje sobre a folha salarial. A primeira camada é de acessórios, de ” penduricalhos ” . Nessa categoria está, por exemplo, o sistema S e o salário educação. Houve consenso de que devem ser financiados esses acessórios – quando seu financiamento se justificar – pelos impostos gerais. Devem, portanto, desde já deixar de incidir sobre a folha.
A terceira camada é a dos benefícios diretos do trabalhador: fazem parte do que se pode chamar um quase-salário. Nas nossas discussões prevaleceu a tese de que esses benefícios devem ficar, ao menos por enquanto, na folha.
O debate centrou-se na segunda camada: a contribuição patronal à previdência do empregado. E obedeceu a um princípio de prudência: que o mecanismo da desoneração deve ser separado tanto quanto possível dos debates a respeito das reformas previdenciária e tributário. Do contrário, não avançará. Quanto à relação entre nossas propostas e a reforma previdneciária, o objetivo prático é que a mudança da base de financiamento do euqivalente à contibuição patronal seja relativamente neutra no impacto sobre o montante da receita que a previdência recebe.
Começamos por onde costuma iniciar a discussão hoje: com a idéia de que a folha de salários deve ser substituída pelo faturamento como base para o financiamento da previdência (no que diz respeito à parte hoje coberta pela contribuição patronal). Nossas longas discussões, porém, acabaram por considerar preocupantes os dois maiores defeitos dessa fórmula intermediária. O primeiro defeito é a incidência desigual sobre as empresas – maior sobre as empresas intensivas em capital. Essas empresas empregam relativamente menos, mas representam vanguarda na escalada de produtividade. O segundo defeito é compartilhar aspectos de um imposto declaratório e ser, portanto, suscetível de evasão fraudulenta.
A partir dessas constatações, a discussão evoluiu para solução mais radical: o financiamento pelos impostos gerais da receita gerada hoje pela segunda camada de ônus – os ônus previdenciários – sobre a folha de salários. Ou mais precisamente: seu financiamento pelo imposto mais neutro – menos distorcivo de preços relativos – que existir em nosso modelo tributário no momento em que se fizer a mudança.
Entre nós, chegou a se falar em base CPMF. Com o desparecimento desse imposto, há dois candidatos: um imposto geral, de alíquota única, sobre transações financeiras ou o imposto sobre o valor agregado, se o Brasil seguir o exemplo de muitos outros países e reorganizar em torno do IVA seu sistema tributário.
Uma corrente importante de opinão entre nós continua a preferir a a solução intermediária, de substituir folha se salários pelo faturamente como base para cobrar a parte patronal da contribuição previdenciária, em vez de optar pela solução mais radical que se acaba de descrever. O peso relativamente maior que incidiria, por consequência dessa fórmula, sobre as empresas mais intensivas em capital, e, portanto, poupadoras de mão de obra, seria vantagem, não defeito, do ponto de vista dos que defendem os interesses do trabalhador. E a atribuição de parte do ônus do financiamento da previdencia aos impostos gerais, exporia a previdência a críticas e ataques. A corrente predominante de opinião entre nós não julgou persuasivas essas objeções.
Regime que inibe o acúmulo de tecnologia e a aceleração da inovação tecnológica na produção pode beneficiar parte da força de trabalho a curto prazo. Prejudica, porém, os trabalhadores como um todo a médio prazo. São eles os maiores beneficiários do aumento da produtividade (desde que fortalecidos os mecanismos institucionais para que se possa apropriar de parte do excedente econômico) e as maiores vítimas de estancamento na elevação da produtividade.
As grandes decisões nacionais sobre o futuro do trabalho e da previdencia não devem ser tomadas com base no temor do poder dos sofismas. Temos de confiar na força da razão para demonstrar que o que é melhor de fato seja como tal entendido pela maioria de nossos concidadãos. E para assegurar que progresso na organização do trabalho não sirva de pretexto a regresso no ordenamento da previdência.
Os dirigentes sindicais e os líderes empresariais consultados não menosprezam os dissabores dessa reorientação. A maior parte, porém, vê nela a maneira mais direta, clara e corajosa de resolver problema que ameaça nosso futuro nacional.
Reversão da queda da participação dos salários na renda nacional
Há cerca de meio século cai a participação dos salários na renda nacional. É longe de ser tendência universal no mundo. Diferem radicalmente as sociedades contemporâneas, mesmo quando comparadas em nível semelhante de desenvolvimento, na maneira de dividir a renda nacional entre o trabalho e o capital. O decréscimo duradouro da parte da renda que no Brasil vai ao fator trabalho opera como causa de desigualdadede poderosa demais para ser plenamente contrabalançada por qualquer política social. E ameaça nossa capacidade de escapar pelo alto – da escalada de produtividade e da valorização do trabalho – da prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta em que nos eoncontramos.
As limitações no aumento da produtividade do trabalho não bastam para explicar esse resultado. Há muito tempo que a subida o do salário real no Brasil costuma ficar aquém dos avanços da produtividade.
Para reverter a queda da participação dos salários na renda nacional, não bastam políticas que procuram influenciar o salário nominal, como sobretudo a política do salário mínimo. Tais políticas têm eficácia restrita. São facilmente anuladas por inflação quando não barradas por política monetária comprometida em manter a estabilidade da moeda. Vargas instituiu a política do salário mínimo, mas o fez, como parte integrante e acessória de uma construção institucional. A nós falta construção dessa ordem. E, na falta dela, os instrumentos que influenciam o salário nominal acabam por se mostrar insuficientes.
Em nossas discussões, partimos da constatação das enormes desigualdades entre os salários no Brasil: uma das espécies mais graves e menos comentadas de desigualdade entre nós. Por conta dessa realidade, concluímos que, em primeira etapa, as iniciativas institucionais (e tributárias) destinadas a reverter a queda da participação dos salários na renda do país devem ser distintas para diferentes níveis da pirâmide salarial.
Na base dessa pirâmide, o primeiro objetivo precisa ser assegurar que o regime tributário seja pelo menos neutro: que pare de castigar quem emprega e qualifica o trabalhador mais pobre e menos qualificado. Para a etapa seguinte, o alvo passará a ser tornar positivo o regime, por meio de incentivos tributários ao emprego e à qualificação desses assalariados.
Para o meio da hierarquia salarial, iniciativa prioritária seria proteger e representar os trabalhadores temporários ou terceirizados. No Brasil, como em todo mundo, representam parcela crescente da força de trabalho. É a mudança dos paradigmas de produção, não apenas o enfraquecimento da posição institucional dos trabalhadores, o que também explica essa tendencia.
A primazia do trabalho permanente, nos moldes em que o conhecemos, teve base segura em determinada forma de produção: a produção em grande escala de bens e serviços padronizados, por meio de maquinária e processos produtivos rígidos, mão de obra semi-especializada e relações de trabalho muito hierárquicas e muito especializadas. É o que os especialistas costumam chamar o Fordismo. O cerne de nosso sistema industrial, instaurado no sudeste do país no curso do século 20, é um Fordismo já tardio. Alcança padrões de excelencia fabril. Mantém-se, porém, competitivo à base de restrição de retornos ao fator trabalho.
Com isso dificulta nossa saída da prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade elevada, do lado alto – de escalada de produtividade e de valorização e qualificação do trabalho -, não do lado baixo – de aviltamento salarial. Temos de acelarar a passagem, que já começou, na parte mais avançada de nossa indústria, rumo a práticas de produção mais flexíveis, mais densas em conhecimento e vocacionadas para a inovação permanente. Ao mesmo tempo, na vasta periferia econômica do país, a tarefa é organizar a travessia direta do pré-Fordismo para o pós-Fordismo, sem que todos tenham de passar pelo purgatório do Fordismo industrial. O país todo não precisa primeiro virar a São Paulo de meados do século 20 para poder depois virar algo diferente.
A proliferação de formas contratuais de trabalho que incluam trabalho tempórário e terceirizado é corolário dessas mudanças. O que elas não predeterminam é o arcabouço institucional e, portanto, os efeitos distributivos de tal transformação.
A justiça e a prudência exigem que esses trabalhadores ” de segunda classe ” gozem de direitos e contem com representantes: para que não sofram abusos e não sejam usados como ” exército de reserva ” que fragilize a posição dos assalariados permanentes.
Daí a necessidade de atenuar o contraste radical entre alto padrão de resguardo para os que desfrutam de empregos regulares e falta quase total de direitos para os que estão relegados à insegurança do trabalho temporário ou terceirizado.
Lembrados de que a própria CLT disciplina o trabalho por prazo determinado, os participantes em nossas discussões procuraram fórmulas que alcançassem dois alvos ao mesmo tempo. O primeiro objetivo é combater o trabalho temporário ou terceirizado quando ele serve apenas como instrumento para escapar de obrigações trabalhistas. O segundo propósito é assegurar que o trabalhador legitimamente temporário ou terceirizado esteja protegido por lei e representado por sindicato. Não há como abolir o problema. Temos de enfrentá-lo.
De nossa discussão resultou a proposta de tres iniciativas compelementares. A primeira iniciativa é a promulgação de um estatuto para disciplinar as condições mínimas de trabalho e os direitos dos trabalhadores que atuam ao largo de todo o espectro de formas legais de trabalho que ocorrem hoje fora das fronteiras do trabalho permanente tradicional.
A segunda iniciativa é a construção de mecanismos para representar e organizar esses trabalhadores. Os meios de comunicação eletrônica ampliam as oportunidades para representar trabalhadores que não se encontrem juntos no mesmo lugar.
A terceira iniciativa é permitir aos trabalhadores permanentes de uma empresa representar os terceirizados daquela empresa desde que satisfeitas duas condições. A primeira condição é que os terceirizados não se hajam ainda organizado e feito representar diretamente. A segunda condição é que, por maioria simples, concordem com tal meio provisório de representação.
Já a partir do topo da pirâmide salarial, a iniciativa recomendada é a efetivação do princípio constitucional de participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas. Princípio que até hoje permanece letra morta. É natural começar a dar-lhe efetividade a partir dos níveis mais altos do assalariados, em círculos concêntricas que incluam parcelas cada vez mais amplas da força de trabalho. É entre os assalariados melhor remunerados que se entende e se abraça com mais facilidade a idéia de que empresa e empregado podem e devem ser, de alguma maneira, sócios.
Os participantes nessas discussões preocuparam-se em não deixar que a participação nos lucros ou resultados servisse apenas para converter salário regular em remuneração variável. Indícios de tal conversão devem ser considerados sinais presuntivos de violação da lei. E insistiram que a integridade do princípio requer, como garantia indispensável, o acesso dos representantes dos trabalhadores à contabilidade das empresas. Tal acesso pode surtir benefícios adicionais ao servir para instigar padrões mais exigentes de ” governança corporativa ” nas grandes e médias empresas em que costumam trabalhar os assalariados mais bem remunerados.
Regime sindical
O tema da revisão do regime sindical foi incluído em nossas discussões por insistência das centrais. (Julgara-o eu, erradamente, controvertido demais para se prestar à construção de uma convergência preponderante de opinião.) Não há como ter projeto consistente a respeito do trabalho sem equacionar os problemas suscitados pelo regime sindical. E as divergências – profundas e reais – a respeito da reforma do sistema sindical deixam de ser impedimentos a acordos significativos quando se abandona o embate de pontos de vista abrangentes em favor do trato de questões práticas e pontuais.
Uns dizem que querem defender até o último suspiro o regime de trabalho instituído por Getúlio; outros, que a tarefa prioritária é substituí-lo. Uns reafirmam lealdade ao princípio da unicidade sindical; outros insistem que o caminho é o do pluralismo sindical. Duas pessoas, porém, não dão a mesma resposta a pedido para definir unicidade. A solução é sair do plano das generalidades e descer ao campo das concordâncias específicas. Um mesmo programa prático pode ter mais do que uma única justificativa e mais do que uma única interpretação.
Para surpresa minha, nossas discussões apontaram cinco pontos concretos de convergência. Todos figuram há tempo no debate nacional. Alguns já estão antecipados na agenda legislativa em curso. Vistos, porém, em seu efeito combinado e cumulativo, representam, ao lado das outras iniciativas resumidas nessa minuta, revolução no estatuto do trabalho no Brasil.
1. Reconhecer em lei o papel das centrais como organizações de âmbito nacional, transcendendo setores específicos da economia e representando correntes distintas dentro do movimento sindical (Lei 11.648/2008, sancionada em 31.03.08).
Há paradoxo em nossa realidade sindical. Um sistema que, por conta do princípio da unicidade, seria, de acordo com o direito escrito, unitário, pauta-se, de fato, por hiperfragmentação sindical. O resultado é negar ao país agentes institucionais adequados para negociar acordos de âmbito nacional. Entre tais acordos, espécie que interessa especialmente ao objetivo de escapar da prensa (entre economias de trabalho barato e economias de elevada produtividade) pelo alto e não pelo baixo é a espécie que vincula aumento de salário a aumento de produtividade. Acordos de tal ordem só existem em países, como a Súecia e a Alemanha, em que os centros decisórios do movimento sindical gozam de autoridade genuinamente nacional.
Em nosso país imenso e desigual, não podemos aspirar a fórmulas tão simples quanto as abraçadas por aqueles países europeus. Entretanto, as centrais, que se desenvolveram ao largo do regime oficial, representam a melhor esperança. Daí a razão para reconhecer-lhes em lei o poder não só de representar, mas também de negociar quando a negociação diga respeito a questões básicas e gerais como a relação que deva haver entre aumento de salário e aumento de produtividade..
2. Substituir o imposto sindical por ” participação negocial ” . Há diversidade de opinião a respeito entre os dirigentes sindicais. Alguns preferem por princípio substituir o imposto sindical, que rejeitam como instrumento de um sindicalismo oficial, atrelado ao Estado e suscetível dos abusos decorrentes de financiamento oficial. Já outros, embora temam a abolição do imposto sindical como ameaça ao vigor do movimento sindical, consideram mais ou menos inevitável sua substituição. E buscam o sucedâneo com mais potencial para assegurar o vigor do sindicalismo. Desses diferentes pontos de partida, chegamos à mesma conclusão: é preciso encontrar substituto para o imposto sindical que fortaleça a legitimidade do sindicalismo sem comprometer sua independência financeira.
Aceita-se, como esse substituto, a ” participação negocial ” : vale dizer, um regime coletivo e consenusal de cobrança. A assembléia do sindicato aprova ou rejeita proposta de contribuição ao sindicato. Tomada a decisão coletiva, ela vale obrigatoriamente para todos os representados (sejam eles ou não membros do sindicato, de acordo com o princípio, enunciado em seguida, de que, na base, o sindicato da categoria preponderante representará todos os trabalhadores). E a contribuição terá de obedecer a um teto, fixado em lei, na forma de porcentagem do salário anual médio dos filiados ou dos representados.
3. Assegurar ao sindicato da categoria preponderante na base – na local de trabalho ou na unidade fabril – o direito e a responsabilidade de representar todos os trabalhadores que atuem naquela base, seja qual for sua categoria. Esse é o resíduo pragmático do princípio da unicidade que todos apoiam: tanto os que abraçam aquele princípio como regra geral quanto aqueles que o rejeitam.
Importante entender que não se trata simplesmente de restringir a unicidade; trata-se de redesenhá-la. Na base do sistema sindical, a divisão da representação em categorias seria sacrificada ao imperativo de uma representação unificada, a ser exercida pelo sindicato da categoria preponderante. Nesse sentido, amplia-se o reino da unicidade, reinterpretada de maneira específica e prática.
Evita-se, com isso, fragmentação na base que ameace prejudicar, sobretudo, os setores mais frágeis do assalariado. Cria-se arcabouço favorável a prática sindical includente. E facilita-se a negociação coletiva, em benefício não só dos trabalhadores, mas tambem dos empresários de boa fé.
4. Combater práticas anti-sindicais. A reconstrução do regime sindical – concordamos todos – precisa vir acompanhada de compromisso para combater práticas anti-sindicais. A proposta esboçada nessa minuta traz proveito a trabalhadores, a empresários e a todo o país. Um de seus pressupostos é a universalidade de seu cumprimento, uma vez traduzida em lei. Não convém ao Brasil ter um regime que no papel fortaleça os interesses do trabalho – e da produção – mas que na realidade do dia-a-dia fique sujeito a cumprimento esporádico, seletivo ou discricionário.
Comprometer-se em combater práticas anti-sindicais significa não tolerar qualquer tentativa de tolher ilegalmente o direito de organizar o sindicato ou de exercer, dentro da lei e do respeito às prerrogativas legais dos patrões e de seus representantes, a militância sindical. O objetivo não é facilitar o conflito; é, pelo contrário, zelar pelo respeito das partes a regras que permitam compor interesses contrastantes e descobrir interesses compartilhados.
Tal compromisso – concluímos – há de traduzir-se de um lado em política de governo e de outro lado em recursos técnicos e humanos adequados para a justiça e o ministério público do trabalho. E se fortaleceria com a institucionalização da figura do ” agente sindical ” – representante do sindicato preponderante e, com isso, de todos os trabalhadores no local de trabalho ou na unidade fabril – em qualquer empresa que tenha mais do que certo número de empregados. Ao agente sindical se deve assegurar lugar para trabalhar dentro da própria unidade de trabalho. Da mesma maneira, deve-se estabelecer procedimento para permitir ao agente sindical atender os associados sem interfirir com as rotinas do trabalho, tais como disciplinadas por lei e por contrato.
5. Organizar legalmente a prática das negociações coletivas, liberada do critério restritivo da data-base. Esse ponto de nosso acordo surgiu de tese apresentada pelos representantes dos juízes e procuradores do trabalho. Alguns dos pontos anteriores dessa convergência a respeito da reforma do regime sindical procuram assegurar a força do sindicalismo sem prejudicar a flexibilidade da economia. É o caso do reconhecimento legal do papel das centrais. E também do poder que o sindicato da categoria preponderante teria, no local de trabalho, para representar todos os assalariadoos que atuem naquele local.
Tais medidas permitem – e até exigem – que se institucionalizem, em todos os setores da economia, as negociações coletivas, conduzidas diretamente entre empregados e empregadores. E liberadas do critério autoritário e uniforme de data-base, imposta por lei. O papel do regime legal não é ocupar o espaço das negociações coletivas e das relações contratuais. É estabelecer arcabouço no qual tais negociações e relações não estejam predestinadas a representar apenas o triunfo dos fortes sobre os fracos: do capital sobre o trabalho, e dos segmentos mais avantajados do assalariado sobre os mais fracos.
Em vez de impor o conteúdo de cada contrato de trabalho, diminuindo o espaço da negociação coletiva, amplia-se esse espaço, mas reforma-se a estrutura institucional em que ela ocorre. E suprimem-se os resquícios de um sistema que procura conter a negociação coletiva dentro da camisa-de-força de um calendário uniforme, que pode não guardar relação com as circunstâncias de cada sindicato, de cada empresa e de cada setor da economia. É maneira mais eficaz de reconciliar os direitos do trabalhador com a inovação na economia. Resulta de nossa experiência e de nossa história; não copia qualquer sistema estrangeiro. E exemplifica o espírito do experimentalismo, ao mesmo tempo pontual e abrangente, que marcou as discussões resumidas nessa minuta.
O significado teórico e político dessa iniciativa
Conclúo a descrição esperançosa dessa iniciativa com duas reflexões: uma de ordem teórica e outra de natureza política.
Um dos pressupostos teóricos dessa proposta é a convicção de que as instituições – e a política em que elas se constróiem – influem na partilha da renda, da riqueza e do poder entre o capital e o trabalho. Essa pode parecer, ao leigo, tese óbvia demais para requerer explicitação. Contradiz, entretanto, diretamente as idéias que há século e meio prevelecem tanto nas correntes dominantes da teoria econômica quanto nas idéias mais prestigiosas do pensamento de esquerda.
Dogma doutrinário que sobreviveu à rebelião Keynesiana contra as idéias econômicas dominantes em meados do século 20 é a tese de que o salário real não pode subir mais do que a produtividade média do trabalho. Qualquer tentativa de ultrapassar o suposto teto estaria fadada ao malogro: a inflação consequente negaria eficácia real ao ganho nominal. Essa tese converge com a idéia de Marx de que o grau da ” mais valia ” tende a convergir nas economias ditas capitalistas.
Essa idéia goza de aceitação tão universal que não surpreenderá a ninguém ser ela, em boa parte, falsa. O elemento de verdade contido na meia verdade de que o salário real não pode aumentar acima do nível da produtividade do trabalho é que o aumento do salário nominal por decreto – como por meio de uma política de salário mínimo – tem eficácia limitada se não fôr complementada por iniciativas que transformem as relações de poder e de parceria entre o capital e o trabalho.
Países em níveis semelhantes de desenvolvimento econômico e tecnológico ostentam diferenças dramáticas na parte da renda nacional que asseguram ao trabalho, como demonstram as estatísticas comparativas a respeito da razão entre salário e valor agregado no setor industrial. Mesmo quando se controla para diferenças ligadas à relativa escassez de fatores de produção, persistem enormes diferenças. É às instituições e à política que se deve atribuir esse resíduo substancial de diferença entre países, de nível semelhante de desenvolvimento, na partilha da renda nacional entre o trabalho e o capital.
Voltar-nos da doutrina das instituições para a política dos acertos entre as organizações do trabalho e do capital é deparar-nos com outro aspecto da realidade e da proposta aqui retratadas. Descrevo nesse texto uma discussão que prenuncia uma negociação. Negociaçao em primeiro lugar entre as centrais sindicais e depois negociaçao entre os dirigentes sindicais e o empresariado. Desfigura-se o sentido da negociação se não se guarda em mente o cunho abrangente e integrado da proposta esboçada. Não se trata de amontoado de sugestões desconexas. Trata-se de programa global. Esse programa tem uma lógica: suas partes guardam relação umas com as outras. E tendem a perder força, e até sentido, quando se deixa de respeitar essa relação.
A desoneração radical da folha de salários é reivindicação quase unânime dos empresários. Ela não deve ser instaurada, contudo, se não em troca de outras medidas a que muitos empresários tenderão a resistir, como a organização e representação dos trabalhadores terceirizados, a amplicação progressiva do princípio de participação nos lucros e resultados e o resguardo dessa participação por meio do acesso que precisam ter os sindicatos à contabilidade das empresas. Tratar a proposta alinhada nessa minuta como conjunto de ações separadas, sob o pretexto de espírito prático, seria, pelo contrário, afundar em pragmatismo antipragmático.
A caracterização da discussão aqui retratada como negociação exige outra qualificação. Acostumamo-nos a aceitar com naturalidade a idéia de que os grupos organizados da sociedade brasileira devam consensuar os regimes jurídicos que os governem. Essa idéia é inaceitável, de direito e de fato, pela nação hoje. Democracia não é corporativismo.
Os grupos organizados e interessados – nesse caso, os sindicatos, inclusive as centrais sindicais, e os empresários, inclusive as organizações patronais – devem ser ouvidos. Em primeiro lugar, por imperativo de justiça: conhecem a realidade e serão afetados pelas mudanças. Em segundo lugar, por cautela: qualquer proposta integrada, como essa, a respeito das relações entre o trabalho e o capital terá melhor condição de avançar se contar com o apoio de grande convergência de lideranças sindicais e empresariais. Ouvi-las, entretanto, não significa, porém, delegar a elas a decisão a respeito do desfecho.
Os trabalhadores organizados e o empresariado das empresas grandes e médias que atuam na economia formal podem ter interesses conflitantes. Têm, também, contudo, interesses compartilhados. E quanto mais lúcidos forem, mais conscientes serão desses interesses comuns. Será esse especialmente o caso com respeito aos setores intensivos em capital – a parte mais rica e avançada da economia -, na qual historicamente se baseiaram as organizações sindicais mais fortes e influentes. Nada garante que esse encontro de interesses coincida com os interesses da maioria desorganizada e excluída. Entendo ser minha tarefa ajudar a construir uma convergência de posições entre as centrais sindicais e, de forma mais ampla, entre elas e o empresariado, de tal forma que o conteúdo da convergência atenda os interesses dessa maioria excluída e desorganizada.
Orienta-se o esforço por um princípio de esperança: que há maneira de entender os interesses dos trabalhadores e os empresários organizados que serve, ao mesmo tempo, os interesses da maioria. Não se avançará nesse terreno, nem sequer se conseguirá demarcá-lo, sem desassombro, despojamento e imaginação.
A integridade dessa construção de convergência requer clareza a respeito de quem tem autoridade e poder para decidir. Não são os trabalhadores e os empresários organizados que decidirão, ou que devam decidir, ao final das contas, qual o regime legal das relações entre o trabalho e o capital no Brasil. São o Congresso Nacional e o Presidente da República, instruídos pela opinião dos cidadãos, ouvidas, entre eles, as organizações mais diretamente interessadas. Daí a importância de engajar toda a nação em debate sobre tema decisiva para nosso futuro nacional.
Deixar de apostar em trabalho barato e desqualificado. Apostar, ao contrário, em valorização e em qualificação do trabalho, sustentados por um aumento da produtividade de todos, inclusive dos trabalhadores que até agora ficaram de fora. Incluir na economia formal e no regime das leis a maioria que até hoje não se incorporou a eles. Andar rumo a um modelo de desenvolvimento que assegure a primazia dos interesses do trabalho e da produção e que se baseie na ampliação de oportunidades econômicas e educativas. Fazer, portanto, da democratização de oportunidades para aprender, trabalhar e produzir o próprio motor do crescimento econômico. Em tudo, a indagação decisiva é: onde estão os outros?