São muitas as clivagens em que se divide a sociedade e as regiões. E uma proposta que pelo menos conforme uma maioria parlamentar parecer estar muito distante de acontecer.

O Partido, por resolução de seu Comitê Central, lançou-se também ao desafio de sustentar uma reforma do financiamento do Estado, colocando esse tema como um dos pontos prioritários de sua proposta de reformas democráticas.

Um pouco de história

Até a República Velha o Estado foi financiado principalmente por impostos sobre as importações, o que dava poder ao setor exportador que determinava a capacidade de importar. Com a construção de um mercado nacional a partir da Revolução de Trinta, paulatinamente esse financiamento foi sendo transferido para os impostos sobre a circulação e a produção de riqueza, permanecendo residuais as receitas decorrentes das importações e do patrimônio e renda.

De modo geral, a produção era tributada pelo Governo Federal (além do tradicional imposto sobre o comércio externo), enquanto os Estados e municípios se financiavam pelo comércio atacadista e varejista, respectivamente. Eram dos Estados e municípios os impostos sobre a propriedade rural e urbana, mas que praticamente nada rendiam, devido a rejeição dos proprietários em pagar qualquer tributo sobre seu patrimônio.

Só a partir da reforma tributária e fiscal de 1967 do Regime Militar, os tributos sobre patrimônio e renda passaram a ter participação significativa, mas os impostos indiretos permaneceram dominantes. Porém, pela primeira vez, esses impostos deixaram de ser cobrados em cascata e passaram a ser calculados pelo valor adicionado, o que permite saber quanto o consumidor está a pagar ao final da cadeia produtiva e de distribuição. Foi quando apareceu o ICM (assim, ainda sem o S) [1]  estadual, o IPI federal e o ISS dos municípios.

O Regime Militar, centralizando o poder na União, normatizou e restringiu a capacidade tributária dos Estados e municípios, padronizando seus impostos. O predomínio político de estados grandes produtores – como São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul – no jogo federativo determinou a cobrança do ICM na origem, dando a estes Estados maior poder de autofinanciamento, em detrimento dos Estados mais atrasados, predominantemente consumidores. Mesmo sob a ditadura, esse arranjo centralizador da Constituição de 1967, benéfico aos Estados mais ricos, só foi possível porque a União bancou um mecanismo de compensação, redistribuindo parte do seu imposto de renda e do IPI por meio de um mecanismos conhecidos como FPE (Fundo de Participação dos Estados) e FPM (Fundo de Participação dos Municípios). Também o ITR – que foi federalizado – passou a ser dividido com os municípios, embora mantivesse quase a mesma baixa arrecadação de antes.

Essa estrutura tributária foi herdada pela Nova República e pela Constituinte de 1987 e perdura, basicamente, até hoje. A grande alteração que a ela foi feita foi a destinação de mais recursos para os Estados e municípios. Alguns novos impostos, como o IPVA, foram acrescentados, e os fundos de participação foram ampliados. Estabeleceu-se que todo novo imposto a ser criados teria que destinar um quarto de sua receita aos entes subnacionais. O imposto de renda continuou sendo aperfeiçoado e aumentou sua participação na receita total.

Assim, a Constituição de 1988 desenhou um sistema tributário que dava ênfase relativa na tributação direta e desconcentrava  regionalmente a receita, tanto pelos impostos subnacionais como pela partição da arrecadação dos federais.

O governo FHC: concentração tributária e elevação da carga

A partir de 1994 e durante os dois governos FHC, um grande número de mudanças constitucionais pontuais aumentou a carga tributária e reconcentrou a arrecadação no Governo Federal. Em meio à estagnação econômica e a aflições fiscais, várias “contribuições sociais” foram criadas (Cofins, CSLL, CIDE, duplicando bases de impostos existentes), e outras foram majoradas (PIS) –  sem distribuir suas receitas com Estados e Municípios.

As novas contribuições além de piorarem a regressividade da carga tributária por incidirem sobre os consumidores finais, trouxe de volta a cobrança cumulativa, em “cascata”, distorcendo o sistema e dificultando o cálculo tributário.

Em passo com isso, o endividamento público explodiu. Enquanto a despesa pública federal se manteve estável, no segundo governo, o Governo FHC, seguindo a receita do FMI, destinou parte importante das receitas ao superávit primário, na tentativa de compensar o endividamento brutal e manter o valor dos títulos da dívida federal.

Uma outra questão de fundo que agravou o problema tributário foi o lento, mas contínuo processo de mudança na posição econômica relativa entre os estados federados. Estados mais ricos como São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul perderão importância relativa, enquanto outros passaram a crescer acima da média nacional, inclusive pela concessão de isenções a novos investimentos para ganhar base tributária. Fenômeno que deu origem à conhecida “guerra fiscal”, que vem desde então estressando as relações entre os Estados. Essa mudança na posição relativa dos entes federados e a política fiscal de disputa de investimentos produtivos têm se constituído, ao mesmo tempo, no maior incentivo à reforma tributária e também no principal obstáculo a sua realização.

Depois da mixórdia das reformas tucanas (40 emendas constitucionais em 8 anos e dezenas de Medidas Provisórias regulamentando-as), do endividamento público explosivo, e da “guerra fiscal” o sistema tributário transformou-se num monstrengo. O problema não é tanto o tamanho da carga tributária, mas sua irracionalidade – complexidade e cobrança “em cascata” (cumulativa) – e sua regressividade (pobres pagam mais proporcionalmente que aos de alta renda).

A regressividade do sistema tributário e a concentração da arrecadação na União

O Brasil tem uma mais alta carga tributária sobre o consumo. Em 2006, 57,9% dos tributos federais (impostos e contribuições) provieram do consumo, e 42,1% da renda. Se juntarmos estados e municípios a parcela de indiretos fica ainda maior. Países da OCDE apresentam uma estrutura tributária inversa: os impostos sobre o consumo, em média, representam 32,1%; o imposto sobre a renda, 35,4% (o restante vem do patrimônio).

Quando os impostos são indiretos eles incidem sobre o consumidor final, com os mais pobres consumindo 100%, ou quase, de sua renda, eles pagam relativamente mais impostos que os ricos. No Brasil, quem ganha até dois salários mínimos gasta 26% de sua renda no pagamento de tributos indiretos, enquanto o peso da carga tributária para as famílias com renda superior a 30 salários mínimos corresponde apenas a 7%.

Até nosso imposto de renda tem baixa progressividade, só há duas faixas de rendimento e seu piso inicial de contribuição é muito baixo. O pequeno valor das deduções e o privilégio da tributação dos rendimentos de capital também reduzem a progressividade. A renda do trabalho é desproporcionalmente tributada frente a do capital: um terço do imposto de renda de 2006 veio do trabalho.

Os impostos sobre a propriedade são muito baixos e uma administração tributária frágil acabam agravando o problema. Um exemplo de que no Brasil não se tributa os ricos e seu patrimônio é o péssimo desempenho de arrecadação do ITR – Imposto Territorial Rural. Apesar da grande concentração de terra, o ITR sempre teve uma arrecadação insignificante; em 2006, representou apenas 0,1% da receita de impostos e contribuições federais.

A irracionalidade da carga tributária e o peso da dívida pública – em meio ao mais longo período de estagnação econômica – criou uma situação fiscal de difícil solução. O pacto federativo foi esgarçado pela “guerra fiscal”, e a tributação indireta e em cascata faz os pobres pagarem cada vez mais pela administração pública e pelos ônus da política monetária e cambial.

A reforma tributária possível e a necessária

Assim, a reforma tributária passou a ser um consenso nacional – mas cada um tem a sua. Não se consegue construir um consenso, nem quanto à distribuição entre pobres e ricos nem quanto às regiões do país.

Todas as tentativas de reforma tributária feitas até agora resultaram apenas em mudanças pontuais. Na primeira tentativa do governo Lula, em 2003-4, além da prorrogação da CPMF e da Desvinculação da Receita da União (DRU), só se avançou na opção de não-cumulatividade  da Cofins. Mesmo assim, muito pouco, pois para vários setores importantes foi mantido a regra cumulativa anterior, e a regulamentação da Lei acabou por aumentar a arrecadação, elevando a carga tributária.

O governo Lula continua tentando fazer a reforma, mas não é fácil mudar o monstrengo herdado das reformas neoliberais tucanas e da longa crise de estagnação que viveu o Brasil nos anos noventa. O caso atual da prorrogação da CPMF ilustra bem a situação. Apesar de um tributo regressivo e cobrado em cascata, o governo não pode nesse momento abrir mão de sua arrecadação, sob pena de prejudicar o financiamento da Saúde, que recebe 20 centavos dos 38 arrecadados por cada real transacionado, a previdência social (10 centavos), e o Fundo da Pobreza – que fica com os outros 8 centavos.

A proposta que está sendo trabalhada neste momento no Ministério da Fazenda é muito limitada, está voltado para reduzir a carga e unificar as regras do ICMS. Mas a redução que houver deve ser muito gradual. Há também a preocupação de manter a atual arrecadação dos Estados, fator relevante e fundamental para manter o equilíbrio regional e viabilizar a reforma.

Segundo se divulga, a proposta trará a criação de dois IVAs (imposto sobre valor agregado): um federal, juntando o atual PIS e a CSLL (que incide sobre os lucros)[2],  e outro substituindo o atual ICMS. Este último teria uma legislação nacional, mas seria arrecadado pelas respectivas fazendas estaduais e seriam devidos no destino (e não na origem como hoje). As eventuais perdas dos Estados com o novo IVA no destino seriam compensadas por um fundo formado pelos ganhos de outros Estados e pelo Governo Federal. Mas a implantação dessa proposta seria lenta, não se completaria antes de 2015 ou mesmo 2020.

Essa proposta deveria ser entregue ao Congresso em novembro, mas agora, devido à conveniência política relacionada à aprovação da prorrogação da CPMF, deve ficar mesmo para o próximo ano. É o que temos até agora em matéria de reforma tributária.

Porém o país precisa de muito mais que isso. Precisamos de um sistema tributário que:
a. acabe com os tributos cumulativos (PIS, Cofins, CIDE), unificando a contribuição da seguridade, dando-lhe natureza não cumulativa (incidência sobre o valor agregado); parte dessa contribuição unificada, sobre o faturamento, pode até ser destinada para financiar a Previdência Social, em substituição ao atual encargo patronal sobre a folha;

b. reduza as alíquotas dos tributos indiretos;

c. eleve a participação dos impostos diretos (sobre renda e patrimônio) no financiamento do Estado brasileiro; e

d. desconcentre a arrecadação, entregando uma maior parcela do bolo aos Estados e municípios; e
e. transfira-se a cobrança do ICMS da origem para o destino, compensando as perdas dos Estados produtores por um período não inferior a oito anos; esse ponto juntamente com o anterior, serviriam de base para renovar e atualizar o pacto federativo.

A carga tributária alta é de difícil reversão. A necessidade de resolver divergências interestaduais e inter-regionais inviabilizam uma redução significativa da receita total. O mais importante não é tanto reduzir a carga tributária, mas resolver sua irracionalidade e regressividade, dando à sociedade, em troca, um maior retorno sob a forma de melhores gastos em serviços públicos e uma política econômica de maior desenvolvimento.

Quanto às divergências interestaduais, só existe solução para elas no âmbito de um novo pacto federativo; que o adeqüe às mudanças no poder relativo entre os entes federados. Esse novo pacto só pode ser patrocinado pela União, que deve abrir mão necessariamente de parte de seus recursos e, provavelmente, realizando também uma reforma fiscal que redistribua as funções entre as três esferas de poder (União, Estados e municípios).

Infelizmente, o Governo Lula não contaria, neste momento, com apoio congressual suficiente para fazer tal reforma, a necessária. É a realidade política das duas casas do Congresso Nacional, expressa numa correlação de forças difusa e divergente.

Mas o Governo Lula é ainda aquele que pode atuar na direção de um sistema de tributário menos regressivo e mais desconcentrado. É até provável que ele não consiga iniciar uma reforma tributária tão ampla como a que defendemos, nem patrocinar o novo pacto federativo que a viabiliza. Porém, se o governo Lula for substituído por um presidente oriundo também do campo progressista, e sua base parlamentar seja ampliada em 2010, é possível construir as condições para realizar uma reforma tributário mais ambiciosa e renovar o pacto federativo, condição fundamental da estabilidade do Estado e da nação brasileira.

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Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e especialista em orçamento e planos públicos. É assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.

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[1] O ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) passou a se denominar ICMS, na Constituição de 1988, quando passou a incorporar como fato gerador a prestação de certos serviços como de transporte e comunicação.

 

[2] Inicialmente a proposta do IVA federal também englobava o atual IPI, mas devido aos problemas que traria à Zona Franca de Manaus, que depende crucialmente da isenção deste imposto para ser competitiva, teve que ser mantido como imposto autônomo. Esse caso, ilustra bem o cipoal de problemas regionais e setoriais que envolvem a reforma tributária.