A questão da independência do Banco Central do Brasil
A instabilidade causada pela crise cambial e de rolagem da dívida pública que se iniciou em maio de 2002, no começo da campanha eleitoral, criou uma enorme pressão sobre os candidatos a Presidente – especialmente Lula – pela continuidade da atual política econômica, por parte daqueles setores por ela beneficiados. As reivindicações desses setores eram bem claras: garantias da continuidade das atuais políticas monetária e fiscal e do regime de liberdade e flutuação do câmbio, bem como de cumprimento dos contratos da dívida pública interna e externa. O próprio governo FHC, através de declarações do Ministro da Fazenda e do Presidente do Banco Central, juntou-se a essa pressão, acenando com um desastre iminente para a Nação caso os mercados não fossem tranqüilizados.
Ao final de junho de 2002, os quatro principais candidatos começaram a declarar, de diferentes formas, sua adesão à pauta do “mercado”, assegurando o respeito aos contratos e garantindo a continuidade do câmbio flutuante, das metas de inflação e da política de superávits fiscais. Lula declarou um compromisso parcial de adesão a essa pauta com a chamada Carta ao Povo Brasileiro, em 22 de junho, citando explicitamente a garantia dos contratos e cumprimento dos acordos já firmados, as metas inflacionárias e a preservação dos superávits fiscais.
Mas a pretensão dos grandes capitalistas nacionais e internacionais e da própria equipe econômica de FHC de influenciar o programa do próximo Presidente da República ia além das simples declarações de intenção e dos compromissos públicos. Exigia também a assunção de compromissos institucionais que dessem segurança de cumprimento das promessas anunciadas. Eles incluíam a aceitação de um Banco Central independente dos Poderes Executivo e Legislativo que pudesse operar, sem estar sujeito a “pressões políticas”, uma política monetária “responsável”, que garantisse a “estabilidade monetária”; e a assinatura de um novo acordo com o FMI, que garantisse o monitoramento da ação do novo governo, pelo menos no seu primeiro ano, bem como o próprio cumprimento da instituição do Banco Central independente (que passou a ser chamada de “autonomia do Banco Central”).
Assim, nasceu o novo acordo com o Fundo, assinado em 4 de setembro passado. Nele está expresso, literalmente, ser seu objetivo “garantir a estabilidade econômica e proporcionar um arcabouço para a continuidade das principais políticas macroeconômicas no ano vindouro [2003]”. O acordo também traz como parte das metas de “desempenho estrutural” a obrigação para o governo brasileiro de aprovar, até dezembro próximo, a Proposta de Emenda à Constituição nº 53, de 1999, que altera o Artigo 192 da Constituição, o que permitirá “ao próximo governo, submeter ao Congresso uma proposta de autonomia operacional do Banco Central do Brasil – BCB”.
Antes das eleições do primeiro turno dirigentes do PT e da campanha de Lula passaram a expressar a concordância do partido com a independência do BC. Antes do segundo turno, Guido Mantega declarou a preferência do novo governo pela adoção da autonomia do Banco em conformidade com as regras vigentes para o Banco da Inglaterra (cuja independência foi iniciativa dos trabalhistas no início do governo Blair, em 1997).
Em dezembro, Armínio Fraga, na última audiência na Comissão Mista de Orçamento como Presidente do Banco Central, afirmou que concordaria que a proposta do novo BC independente contivesse um dispositivo criando um teto para os custos fiscais que a ação do Banco criasse para com o Tesouro. Essa proposta representa uma grande concessão por parte dos defensores da independência do BC. Pela primeira vez o Banco Central reconheceu, de forma oficial, que a execução da política monetária e cambial de fato representa um custo fiscal, como o representante do PCdoB naquela Comissão Mista, Deputado Sérgio Miranda, vinha denunciando a anos, em todas as suas audiências com as autoridades monetárias. Além de reconhecer a existência desse custo fiscal, a proposta de Armínio Fraga reconhece também que o BC – assim como as demais autoridades governamentais – não pode continuar sacando contra o Tesouro Nacional sem limitação como tem feito até agora.
No entanto, após a posse do novo governo e a escolha do novo presidente do Banco Central do Brasil, as afirmações sobre o novo desenho da agora chamada “autonomia operacional” dão conta de que a autarquia não só manterá todas as funções hoje existentes, como também terá como objetivo institucional o cumprimento de uma única meta, qual seja, a de estabilizar a moeda, a meta inflacionária. Isso, na prática, significa rejeitar o modelo do Banco da Inglaterra, como sugeria Guido Mantega antes das eleições.
Mesmo a proposta de existência de um teto para os custos fiscais do BC, aventada pelo ex-presidente Armínio Fraga, também está sendo posta em causa. A imprensa começa a veicular opiniões – aparentemente oriundas do novo governo – de que esse teto poderia prejudicar a livre atuação da autoridade monetária, prejudicando sua credibilidade junto ao “mercado”.
1. O significado e a natureza da independência do Banco Central
A independência do Banco Central (termo que usaremos como sinônimo também de “autonomia”, por razões expostas adiante) significa basicamente a concessão à sua diretoria de um mandato fixo para executar suas funções clássicas de autoridade monetária – a gestão da política monetária e cambial, além de emprestador de última instância do sistema bancário – cabendo ao Poder Público fixar as metas a atingir. A diretoria mandatária reporta-se então diretamente ao Poder Legislativo, no caso mais comum, a um comitê do Senado, a quem presta conta de suas ações.
Ao falarmos em banco central, está se entendendo uma autoridade monetária clássica que tem por função precípua o controle dos meios de pagamento, a emissão de papel-moeda (a moeda estatal) e ser o emprestador final do sistema bancário. Estamos considerando também uma autoridade organizada em uma estrutura formada basicamente por dois órgãos dirigentes distintos: um comitê de política monetária, órgão colegiado que fixa as diretrizes para a execução da política (semelhante ao atual Copom) e uma diretoria executiva que opera essa política no dia-a-dia.
A independência da autoridade monetária está historicamente ligada tanto ao processo de maturação do capitalismo – o grau de desenvolvimento de seu capital financeiro – como também ao processo de democratização do próprio Estado.
Nos países centrais, à medida que o grande capital assumiu o controle do desempenho da economia para minimizar os efeitos catastróficos das crises cíclicas, ele associou-se ao poder de coerção do Estado, criando a figura do banco central, um aparelho estatal misto que através da política monetária age tanto como agente econômico como autoridade política. Mas a crescente sensibilidade do Estado às pressões de diversos setores sociais, tanto de outros setores capitalistas como populares, criou também a necessidade de isolar o banco central, como autoridade política, da influência de seus órgãos políticos representativos como o parlamento e o poder executivo. Ou seja, insular os executores da política monetária das reivindicações econômicas de outros setores que poderiam trazer instabilidade ao sistema. Para isso a política monetária passou a ser associada à categoria de técnica neutra, cujo objetivo final é a estabilidade da economia, escamoteando sua capacidade, como política pública, de arbitrar ônus e ganhos aos diversos grupos e classes sociais.
A idéia de independência está estreitamente ligada à concepção de que as funções de uma autoridade monetária são eminentemente técnicas e à idéia de que existe uma única política monetária correta, tecnicamente definida, economicamente neutra, que tem como pressuposto absoluto a estabilidade da moeda. Essa política monetária “técnica” significa hoje – à luz da atual teoria dominante – que sua ação não pode servir para, em curto prazo, agir sobre a demanda agregada, pois isso apenas resultará em inflação e não em elevação da produção. Esta é a política considerada pelos principais governos e organismos internacionais como responsável e macroeconomicamente saudável.
De acordo com essa concepção, o que o Banco Central executa, então, não é uma tarefa política. Diferentemente do que fazem outros órgãos governamentais quando executam políticas públicas, para ele não existiriam escolhas a serem feitas; a política e seu objetivo estão dados, são únicos. Assim, não haveria razão para que a autoridade monetária seja subordinada aos desígnios políticos do Poder Público, exceto quanto às metas e linhas gerais de sua ação, que devem medir a eficiência desta.. Manter a instituição subordinada às interferências políticas de curto prazo apenas traria distorções à política monetária e, conseqüentemente, a indesejável inflação.
Não havendo alternativas de política monetária, cabe ao Banco Central apenas escolher os instrumentos, dosá-los, para atingir as metas estipuladas em um período. As mudanças sobre o que significa uma política monetária responsável só acontecem em prazo muito longo, consentâneas com as alterações do sistema capitalista mundial e das respectivas teorias econômicas que as acompanham.
Então, basicamente, a questão política da independência do Banco Central está intrinsecamente ligada à escolha de uma determinada política monetária (e de câmbio). A questão de fundo é que ao conceder independência ao Banco, está se fixando também uma política monetária de longa duração. Essa conexão entre as duas questões está meridianamente clara nas declarações de autoridades, financistas e analistas defensores da independência. É evidente que de nada adianta ter um banco central fora do alcance do poder político imediato se a instituição não estiver comprometida com uma determinada política monetária.
No Brasil, a relevância da questão da independência está ligada também ao desenvolvimento do capital financeiro como com a redemocratização do Estado. O desejo e a “necessidade” da independência da autoridade monetária estão estreitamente ligados ao crescente papel hegemônico que o capital financeiro veio assumindo na economia brasileira; bastante visível a partir das reformas financeiras liberalizantes da década de 90. Esse poder se expressa, basicamente, na mudança de regras que resultou na desregulamentação dos fluxos de capitais com o exterior, na forte posição credora do sistema financeiro frente ao Estado e fortalecimento de seu monopólio do crédito (com a redução da presença estatal no setor e a conversão dos bancos estatais às mesmas práticas dos bancos privados).
Essa nova situação gerada pelas regras liberalizantes e pela dependência de boa parte do capital financeiro da dívida estatal fez com que o Banco Central tenha assumido um papel cada vez mais relevante na política e na economia nacional. E fez também com que o seu controle se tornasse um ponto tão importante na agenda política.
Com um Estado mais permeável às pressões, especialmente nas circunstâncias da eleição de Lula, o grande capital financeiro, tanto nacional como internacional, teme que a influência política de outras forças sociais tanto no parlamento como no Poder Executivo, termine por alterar as regras atuais, que tanto poder político lhe rende, como também mude a política monetária (inclusive quanto à administração da dívida pública), criando riscos para seus interesses.
Mas é importante também compreender que, como é próprio do sistema capitalista, os interesses do capital financeiro estão hoje muito confundidos com a própria estabilidade da economia. É uma difícil tarefa, hoje, impor ônus ao capital financeiro sem ficar a braços também com um risco sistêmico que paralise e desarticule os circuitos econômicos.
Reconhecendo essa dificuldade, pode se entender a decisão do PT de aceitar a independência do BC – associada aos compromissos de manutenção dos objetivos básicos de política monetária – como uma concessão consciente de parte do poder político ao capital financeiro. Seria o reconhecimento de jure de uma situação como existente de facto, e que teria por objetivo viabilizar a estratégia do governo Lula.
2. As conseqüências de um Banco Central independente
Como vimos, um Banco Central atuando independente do Governo Federal traz uma grande limitação à capacidade de implementar políticas econômicas diferentes das atuais, tão de agrado do “mercado”. Será, por exemplo, impossível fazer uma política de aumento do investimento estatal se a política monetária mantiver a taxa de juros elevada ou não permitir a expansão do crédito por parte do sistema bancário. Também não será possível qualquer medida mais efetiva de renegociação da dívida externa se o BC continuar a manter a taxa de câmbio flutuante e as atuais regras de movimento de capital com o exterior. O poder de barganha do país, como devedor soberano, será diminuído.
Na prática, o Banco Central independente constituir-se-á em um governo à parte, que mantém poder de veto à política econômica do novo Governo, inclusive à sua política fiscal, ou seja, a tributação e o gasto público. Com isso, o novo Governo ficará “enquadrado”, limitado que estará às condicionantes das políticas monetárias e cambiais atuais.
É claro que leis podem ser mudadas ou mesmo uma diretoria do Banco poderá ser demitida. Mas isso não poderá ser feito sem um custo político e econômico elevado, já que não poderá ser levada a cabo com a necessária surpresa, de modo a não permitir que o atual poder de retaliação do capital financeiro leve o país à bancarrota, antes que o Governo possa adotar medidas de proteção à economia nacional e aos interesses do povo.
Mas essas conseqüências, apesar de prováveis, não são de todo inevitáveis. Elas poderão ser minoradas a depender das regras que a lei específica venha a estabelecer. Obviamente essas conseqüências seriam anuladas se também fosse possível manter no BC uma diretoria totalmente afinada com o governo Lula. Mas isso é virtualmente impossível, pois implicaria o rompimento do compromisso de manutenção das bases da atual política monetária e seria encarado como uma ruptura, já abjurada pelo PT.
3. A situação legislativa – o marco legal
O Sistema Financeiro Nacional está previsto no art. 192 da Constituição e sua regulamentação, atendidas diversas condições, deve ser feita através de lei complementar. As tentativas de regulamentar o dispositivo que determina a taxa de juros máxima de 12% a.a. (um dos parágrafos do art. 192), fez o Supremo Tribunal Federal, em 1993, por influência do Poder Executivo, interpretar que o Sistema Financeiro Nacional, todo o art. 192, só poderia ser regulamentado por uma única lei complementar. Essa decisão, por causa da complexidade de temas abordados pelo art. 192 e pela conveniência do governo FHC, terminou por inviabilizar qualquer tentativa de regulamentar o Sistema Financeiro Nacional.
Por isso, tornou-se necessário alterar a Constituição para viabilizar a regulamentação específica do Banco Central, a fim de torná-lo independente, sem ter de enfrentar outros temas que não interessava ao governo FHC regulamentar (como a definição do teto da taxa de juros). Uma proposta de emenda constitucional – PEC nesse sentido, de iniciativa de José Serra, foi aprovada no Senado em 1999. Enviada para a Câmara dos Deputados, a PEC nº 53, de 1999 já foi aprovada pela Comissão Especial e Comissão de Constituição, Justiça e Redação, nos mesmos termos e está pronta para ser apreciada pelo Plenário, desde agosto de 2001. Sendo matéria polêmica o Governo até agora não teve forças para aprová-la.
Neste momento, o primeiro passo para adoção da “independência” do Banco Central está na dependência da aprovação dessa PEC. Ela deverá ser submetida a dois turnos com cinco sessões ordinárias de intervalo. Aprovada na Câmara, sem mudanças, ela será promulgada. Essa aprovação, que estava agendada no acordo com o FMI para se dá em dezembro último, não ocorreu, tendo sido adiada provavelmente para março vindouro.
Depois, segundo o acordo com o FMI, o próximo governo deverá enviar um projeto de lei complementar, determinando suas atribuições e a estrutura do Banco (provavelmente de um comitê e de uma diretoria executiva), as regras de escolha de seus dirigentes e de seus mandatos, seus poderes e mecanismos de controle e prestação de contas. Essas regras é que vão determinar a natureza de sua independência e suas reais conseqüências para o Estado e o país.
4. Objetivos e regras dos bancos centrais independentes no mundo
Embora mantendo seu núcleo básico, o grau e as regras de independência da autoridade monetária variam de país a país. Uma característica fundamental é o objetivo a que o banco está vinculado, a sua missão. O Bundesbank alemão, e agora o Banco Central Europeu – BCE, como a maioria dos bancos, têm por objetivo único “salvaguardar a moeda”; mas o FED americano deve buscar tanto o “máximo emprego” (no sentido de atividade geral) da economia como os “preços estáveis”. O Banco da Inglaterra tem também dois objetivos: manter os preços estáveis e “dar suporte à política econômica, incluindo seus objetivos de crescimento e emprego” (no sentido de trabalho).
Um problema com os objetivos duplos – associando “defesa da moeda” e nível de emprego – é que não raramente eles se excluem e impõem uma escolha. Talvez por essa razão é que só raramente governos fixam objetivos concretos a ser atingidos em determinado período por seus bancos centrais, muito menos os quantificam em metas. Apenas para o objetivo de estabilidade de preços passou a existir recentemente a política de metas inflacionárias. Essa política vem sendo praticada desde o início da década de 90´ na Nova Zelândia e na Inglaterra (1992) e mais recentemente pelo BCE e por alguns países da periferia.
As diretorias, designadas pelo Poder Executivo e geralmente aprovadas por comitê senatorial, têm mandatos variáveis. No FED são oito anos, e os mandatos dos conselheiros não são simultâneos, não podendo ser renovados à mesma época. No Banco da Inglaterra o mandato é de três anos para os membros do comitê de política monetária e de cinco anos para o presidente (e também não coincidentes). Essa não coincidência dos mandatos concede ainda mais rigidez a direção da política monetária, tornando a maioria do colegiado tão duradouras e inflexíveis quanto a das cortes constitucionais.
De modo geral, o sistema de controle e prestação de contas é feito mediante relatórios e audiências periódicas em comitê do Senado (trimestrais ou semestrais).
5. Independência ou autonomia operacional?
O termo independência é utilizado generalizadamente em todos os países para definir a natureza de um banco central não submetido à discricionariedade direta dos poderes do Estado. No Brasil, a partir do ano passado, os defensores da proposta passaram a se referir a ela como “autonomia operacional”. A diferença, segundo seus defensores, é que a independência dá uma idéia de que o Banco Central não estaria mais subordinado a nenhum outro poder, executando uma política de sua própria elaboração, segundo seus critérios e dela não prestando contas. Para eles, autonomia seria um termo mais apropriado, pois o Banco executaria uma política com base em metas estabelecidas pelo Congresso Nacional e a ele prestaria contas; assim sua independência seria relativa, seria “técnica”, operacional, cabendo ao Poder Legislativo a decisão política de fixar as metas.
Mas essa mudança de nome é apenas escamoteadora, cosmética. O que se define como “independência” (total e sem responsabilidade) não existe em nenhum país; em todos eles o banco está sempre submetido a um comitê parlamentar e seu desempenho é acompanhado por ele. O que se está propondo no Brasil é exatamente, com as variações conhecidas de grau e regras, o que se conhece, em todo o mundo, como “independência”. Não há, ao meu ver, nenhuma diferença de substância.
É assim, por exemplo, que Alan Blinder, ex-vice-presidente do FED, economista especialista em sistemas financeiros e professor da Universidade de Princeton, define o que seja um banco central independente:
“Primeiro, quando um banco tem liberdade para decidir como tentar atingir seus objetivos e; segundo, quando é muito difícil que qualquer setor do governo anule suas decisões”. (…) [Ou seja, é a] independência em relação ao resto do governo (…) tanto em relação à política partidária quanto à opinião pública.”
E, mais adiante:
“Um banco central independente tem uma margem considerável para decidir como tentar atingir seus objetivos; isso não significa que o banco pode selecioná-los sozinho. Ao contrário, em uma democracia parece inteiramente apropriado que as autoridades políticas definam os objetivos e depois instruam o banco central a tentar atingi-los.”
Essa definição é a mesma encontrada tanto na literatura acadêmica quanto à considerada no Tratado europeu de Maastricht. Essa é a idéia de “independência”, tanto no mundo como no Brasil. Embora a literatura acadêmica registre a existência de diferentes graus de independência entre os bancos centrais, os principais autores não recorrem normalmente à terminologia de “autonomia” como tipologia de classificação para os diferentes graus de liberdade concedidos pelos governos às suas autoridades monetárias.
A mudança de nome pretende apenas tornar palatável uma reforma até agora extremamente impopular na opinião pública e entre os parlamentares no Congresso Nacional. Assim como a “cláusula de exclusão” da Lei Orgânica dos Partidos, de 1995, foi, pelo mesmo motivo, transformada e popularizada como “cláusula de barreira”.
Porém, como a mídia imporá a nomenclatura mais favorável à aprovação da reforma, não temos dúvida que a matéria deverá ser tratada daqui por diante, cada vez mais, como “autonomia” ou “autonomia operacional” do BC.
6. A discussão dos argumentos favoráveis a “independência”
Com base nos pressupostos já explanados anteriormente de política monetária única e técnica, podemos resumir assim os argumentos dos defensores da independência do Banco Central (e que são semelhantes em todo o mundo):
(a) a política monetária por sua natureza requer um longo prazo para surtir seus efeitos; como políticos e a opinião pública só reagem ao curto prazo, é preciso isolar o banco central de suas pressões, evitando mudanças de rota;
(b) a política monetária exige um saber técnico que não se presta direito ao debate em arenas políticas;
(c) a independência concederá mais credibilidade à autoridade monetária, diminuindo a desconfiança do “mercado” e, conseqüentemente, a instabilidade, fazendo com que ele possa alcançar seus objetivos com menor custo econômico e social.
Para seus defensores o banco central deve ser independente para melhor desempenhar seu papel de guardião da moeda. Porém, três questões devem ser respondidas:
1ª banco centrais independentes são mais eficientes?
2ª o banco central será independente de quem? e
3º se ele guarda a moeda, quem guardará os guardiões?
Bancos centrais independentes são mais eficientes?
O principal argumento dos defensores da independência do banco central é o de que a melhor estratégia de promoção da estabilidade e crescimento de uma economia é dar primazia à defesa da moeda. Isto é, inflação é sempre necessariamente ruim para o desenvolvimento econômico e deve ser evitada a todo custo. Esse axioma substituiu o antigo paradigma keynesiano de busca do “pleno emprego” da economia.
Como decorrência desse axioma, para operar essa primazia da estabilidade da moeda o melhor instrumento é ter um banco central independente. O grande estudo técnico, sempre citado, que ampara a superioridade do banco independente em manter moedas estabilizadas é o de Alberto Alesina e Lawrence Summers, de 1993, que comparando as taxas médias de inflação de dezessete países no período 1973-86 concluiu que o grau de independência dos bancos centrais era inversamente proporcional às inflações nacionais ocorridas; isto é, quanto mais independente era a autoridade monetária, menor era a taxa inflacionária do país.
No entanto, outros trabalhos técnicos mais recentes, no próprio campo teórico dominante hoje no mundo acadêmico das ciências econômicas, contestam não só o axioma da primazia do combate à inflação, como a própria correlação empírica encontrada por Alesina & Summers entre independência do banco central e estabilidade monetária.
Segundo William R. Clark, da Universidade de Nova York, políticas macroeconômicas concebidas e operadas com base em influência eleitoral (demanda por mais emprego, por exemplo), parecem, de fato, ser mais inflacionária do que as formuladas por atores imunes a essa pressão; no entanto, as primeiras tendem a gerar mais emprego e crescimento. Outro estudo, realizado por Robert Barro (da Universidade de Harvard) para o Banco da Inglaterra, comparando índices de inflação e de crescimento de cem países por mais de trinta anos, constatou que processos inflacionários só prejudicam o crescimento em caso de taxas muito elevadas.
Isso pode nos levar a conclusão, tautológica, que políticas que privilegiam o combate antiinflacionário são mais eficientes apenas para manter preços estáveis, não sendo mais eficientes para gerar desenvolvimento, emprego e renda, do que outras políticas que objetivam diretamente, também, emprego e crescimento.
Mas, independente do mérito de políticas que privilegiam o combate à inflação, as conclusões empíricas de Alesina & Summers entre bancos centrais independentes e maior estabilidade monetária ou melhor desempenho macroeconômico também são contestadas. Um trabalho de Fuhrer mostra que a correlação defendida naquele famoso estudo em favor da relação BC independente vs. baixa inflação não se mantém quando se acrescenta à amostra de Alesina & Summers um número maior de países (incluindo países em desenvolvimento) ou quando “outras variáveis são consideradas em uma análise de variáveis múltiplas”. Ainda segundo Blinder, dois outros estudos também mostram que a correlação defendida por Alesina & Summers entre BC independente vs. bom desempenho macroeconômico é questionável; ou seja, não existe, necessariamente, uma relação de causa e efeito entre as duas variáveis consideradas.
Mesmo a idéia de que bancos centrais independentes reduziriam os custos de combate à inflação também não são pacíficas. Enquanto Alan Blinder considera que tal afirmativa não tem base científica ou mesmo empírica, um estudo de Manfred Gartner conclui exatamente o contrário, mostrando que os custos do combate antiinflacionário, em termos de perda de renda e redução do PIB, são menores exatamente em países onde a autoridade monetária é dependente.
Em resumo, como vimos acima, não existe uma razão técnica – mesmo dentro da corrente teórica predominante na economia – que estabeleça de forma pacífica e inequívoca à necessidade ou mesmo à melhor eficiência de um banco central “independente” frente a um “dependente”. Nem em relação a melhor consecução da estabilidade da moeda, nem tampouco quanto a um melhor “desempenho macroeconômico”. A questão continua polêmica na teoria econômica, mesmo dentro da mesma escola das expectativas racionais. Não há consenso, nem saber incontrastável. Ou seja, a discussão da independência da autoridade monetária continua sendo, acima de tudo, uma questão de opção política.
Independente de quem?
Os argumentos listados pelos defensores da “independência” denotam uma mal-disfarçada intenção de “captura” de um importante aparelho do Estado por um “corpo de técnicos” que por sua perícia e saber técnico supostamente saberiam melhor do que a sociedade, ou seus representantes mandatários, o que é melhor para a economia e a vida nacional. É a mesma “ideologia” da tecnocracia que esteve em voga durante a ditadura militar e que justificava manter os políticos com mandato popular fora do poder. É um argumento autocrático e autoritário.
A insistência em destacar a necessidade de estabilidade da política e sua manutenção por longo prazo mostra que, apesar do discurso de que cabe ao poder político a definição da política, a independência da autoridade monetária torna não só muito difícil que “outro setor do governo anule suas decisões” como também que mude a própria política monetária.
O problema central é que uma vez que um banco central é “conquistado”, qualquer mudança de curto prazo torna-se sobremaneira custosa. Se uma política torna-se inadequada frente a uma mudança do ambiente econômico ou se forem cometidos erros em sua condução, será extremamente custoso fazer alterações ou impor uma nova política frente à resistência, por exemplo, dos interesses majoritários de curto prazo do mercado financeiro. Complexas e demoradas discussões em uma comissão parlamentar e também procedimentos de destituição e eleição de nova diretoria tornam a economia e a estabilidade financeira presas fáceis da especulação e de comportamentos de fuga do capital financeiro.
Em um país como o Brasil, dependente e com uma estrutura econômica ainda em formação, a economia está sujeita a mudanças rápidas e é vulnerável a choques externos. A rigidez na política monetária, como nas regras cambais, por exemplo, é mais uma desvantagem do que uma qualidade.
O eventual fracasso de uma política monetária frente a uma súbita mudança do ambiente externo, como aconteceu ao regime de taxa de câmbio administrada até janeiro de 1999, mostra quão indesejável é a pretendida rigidez de longo prazo da política monetária. O que teria sido do país se, em janeiro de 1999, Gustavo Franco, inflexível ideólogo do regime do câmbio administrado, dispusesse de um mandato inamovível? A nação tomaria o mesmo caminho ortodoxo da Argentina, teria sido sangrada em suas reservas até a bancarrota ou se teria quebrado a regra legal e deposto o insensato? Se aquela desvalorização já nos saiu cara, quanto teria custado com um Gustavo Franco “independente”?
Porém, no fundo, o que os setores financeiros esperam com a “independência” não é a estabilidade de conduta, que todos sabem ser uma miragem, mas sim o controle das mudanças, a sua previsibilidade por parte dos setores mais relevantes do mercado financeiro interno e externo. Para esses setores, através do exercício de seu poder de pressão sobre as variáveis monetárias e o controle que as teorias dominantes exercem sobre os tecnocratas do Banco Central, é fácil induzir políticas e impor correções.
A especificidade da natureza técnica de um banco central e de suas tarefas também não é um argumento para o seu isolamento. É verdade que a área exige um conhecimento técnico considerável, mas tal argumento também pode ser aplicado a outras áreas do governo – como a da tributação, por exemplo – sem que ninguém ache razoável conceder também “independência” para a Receita Federal.
Quem guardará os guardiões?
Outra questão que vale destacar é o papel de guardião da moeda que pretende assumir o banco central, tanto em relação ao mercado quanto em relação aos próprios poderes do Estado, sujeitos que estariam a expressar interesses míopes de curto prazo ou mesmo espúrios. Fica presumido que graças ao seu saber técnico ou elevada ética seus próprios dirigentes estariam isentos de sofrer as mesmas pressões “externas”. Exceto a mais cândida ingenuidade, essa suposição é pouco sustentável e a questão de quem guarda os guardiões se impõe.
Os dirigentes de um banco central e seus técnicos mais relevantes trabalham diretamente com um setor econômico poderoso, com profundas ligações tanto na mídia como no meio acadêmico. Tanto os dirigentes como os técnicos podem ser tentados por lucrativas carreiras no sistema financeiro privado, como sói acontecer, ou prestigiosas carreiras acadêmicas. E, em particular os seus dirigentes, também estarão sujeitos, assim como os políticos com mandatos eletivos, à legítima pretensão da recondução, com todas as tentações que isso implica.
No nosso caso particular essa fragilidade às “pressões externas” fica agravada por duas situações: (a) as dificuldades de controle sobre um agente tão poderoso como um banco central, feito sempre a posteriori (a grande assimetria de informações permite sempre grande margem de comportamento oportunista); e (b) a falta de tradição de um corpo técnico profissionalizado em assumir os cargos de direção, sempre ocupados por diretores recrutados diretamente do sistema privado e que para lá retornam após seus mandatos.
No Brasil, as enormes dificuldades de controle sobre as ações da autoridade monetária e sobre a conduta de seus dirigentes por uma comissão legislativa são evidentes. Dependerá sempre do jogo de maiorias. Por outro lado, o recrutamento de dirigentes no sistema privado, que dificilmente poderá ser inteiramente vetado, torna difícil construir uma ética corporativa que dê ao Congresso Nacional e à sociedade a garantia de minimizar a influência de interesses espúrios na condução das políticas.
Os custos fiscais do BC
Por fim, há um problema importante em relação à ação do Banco Central que pode ser agravado pela sua independência. A execução da política monetária, especialmente em relação à fixação de taxa de juros e às intervenções da autoridade monetária no mercado cambial, gera necessariamente um ônus para o Tesouro Nacional. Ele se traduz pelo aumento dos custos dos encargos da dívida pública como pela capacidade que Banco tem de gerar passivos para o Tesouro. Foi o custo da política monetária e cambial que gerou a principal parte da imensa dívida pública atual. A falta de limite orçamentário existente pode ser ainda mais agravada pela maior autonomia que o Banco possa vir a ter na execução de suas políticas.
Essa verdade, tantas vezes negada pelo governo passado, foi enfim admitida em dezembro último por Armínio Fraga, como vimos no início. Agora ela não pode ser simplesmente varrida para baixo do tapete como invencionice da “oposição”.
7. Sugestões de propostas de regulação
Como já afirmamos, parte das objeções à independência da autoridade monetária pode ser minimizada com uma adequada legislação, embora a essência autocrática e autoritária do problema resulte sempre sem solução.
A possibilidade de fixação de regras que minimizem o impacto da autonomia do Banco Central é o que veremos a seguir; partindo do pressuposto de que PEC 53 – com o arco de apoio que arregimentou – será mesmo aprovado dentro do cronograma do acordo com o FMI.
Achamos necessário sugerir propostas à nova regulação que dizem respeito às atribuições do Banco, à sua estrutura e aos mecanismos de seu controle e responsabilização. Estaremos tomando como certo que a reforma do BC é uma decisão do Governo Lula e que apesar das condições já anunciadas nos discursos de posse do ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central do Brasil, o projeto de lei complementar ainda poderá ser alterado ainda no Poder Executivo ou durante sua tramitação no Congresso Nacional. Parte considerável das propostas a seguir estão em consonância com o modelo adotado no novo estatuto do Banco da Inglaterra (Bank of England Act 1998) .
Responsabilização da autoridade monetária
A questão da subordinação e de responsabilização (accountability) do Banco Central é a condição inicial a ser definida. Sugerimos que a subordinação do BC ao Poder Legislativo seja feita mediante seu reporte a uma comissão mista do Congresso Nacional (que pode ser a já existente Comissão Mista de Planos e Orçamento ou uma outra constituída ad hoc) a quem caberá não só sabatinar e aprovar sua diretoria (e, eventualmente, destituí-la), bem como acompanhar, em audiências trimestrais, o desempenho dos cumprimentos das metas e dos custos incorridos.
A essa Comissão do Congresso Nacional também deveria incumbir o papel de estabelecer as diretrizes de compatibilização entre as políticas monetária e fiscal, viabilizando sua coordenação. Essa coordenação entre as duas políticas é condição essencial para o sucesso de uma políticas econômica e para reduzir os custos fiscais e sociais de sua implementação.
Objetivos do Banco Central
O primeiro e principal problema a enfrentar para viabilizar o controle e a responsabilização do novo Banco Central é a fixação dos objetivos de suas ações. O estatuto do Banco da Inglaterra é, sem dúvida, aquele que traz o melhor modelo para fixação dos objetivos para um banco central, conjugando a busca da estabilidade de preços com a obrigação de dar sustentação à política econômica praticada pelo governo.
Mesmo que a possibilidade do Banco ter mais de um objetivo tenha sido oficialmente negada no discurso de posse tanto do ministro da Fazenda como do novo presidente do Banco Central – descartando assim o modelo do Banco da Inglaterra – consideramos importante insistir nessa proposta.
Ter um único objetivo como tem o atual Banco Central – ser “o guardião da moeda” – é suficientemente vago para se adaptar a qualquer propósito e demasiadamente restrito para justificar a execução de uma política monetária apenas antiinflacionária, como a atual. Além disso, ter um objetivo único permite ao Banco não ter nenhuma responsabilidade pelos custos fiscais e econômicos que possa infligir ao Estado e à sociedade em nome de bem cumprir sua “missão”.
Mas esse duplo objetivo pode ter pouco valor se apenas for fixada meta para a estabilidade de preço (o compromisso da meta inflacionária). A melhor opção seria não quantificar nenhum dos objetivos da autoridade monetária, tendo em vista a complexidade da realidade econômica e da tarefa da autoridade monetária.
Mas, se existe o compromisso com a continuidade das metas inflacionárias, então é desejável que a lei determine a fixação de outras metas de desempenho, verificáveis no decorrer do exercício, que traduzam o efetivo apoio à política econômica do governo, como, por exemplo, uma taxa de desemprego ou outra taxa que represente o nível de emprego da economia, que possa ser verificável de forma confiável, mensal ou trimestralmente. Essas metas devem ser fixadas não para paralisar ou obstruir a ação do Banco (já que poderiam ser incompatíveis), mas para balizar e limitar o nível de sacrifício que a sociedade como um todo, representada pela sua representação política, pretende assumir. Essas outras metas seriam os limites socialmente aceitáveis para o cumprimento da meta inflacionária. O conjunto de metas (inclusive a inflacionária) serviria, também, para explicitação política da viabilidade e dos limites do programa a ser implementado pelo governo.
As demais metas de desempenho devem ser fixadas, como as atuais metas inflacionárias, para o exercício seguinte, com força coerciva, e para os dois sucessivos, como indicativas. Assim como a meta inflacionária, essa outra meta de desempenho será fixada na Lei de Diretrizes Orçamentárias ou por resolução da comissão legislativa própria que venha a se formar para acompanhar o comportamento do Banco.
Outra questão importante, fundamental, é a limitação da capacidade da autoridade monetária de infligir custos ou riscos fiscais, seja pela majoração de encargos da dívida pública seja pela criação de novos passivos que absorvam custos privados, como os atuais mecanismos de hedge (títulos vinculados à variação cambial e contratos de swap). Para tanto, sugiro que sejam adotados dois tipos de limitações:
(a) inclusão, na resolução do Senado que trata de fixação de limites máximos do endividamento público, de teto também para a dívida do Banco Central, inclusive para a assunção de riscos de crédito (contratos swap e outros derivativos);
(b) fixação, como meta anual, sujeita às mesmas sanções das outras metas de desempenho, de um limite ao resultado nominal da necessidade de financiamento do BC e de um teto para os custos fiscais decorrentes da execução das políticas do Banco.
Atualmente, só existe meta para medir a eficácia da ação da autoridade monetária, ou seja, se ela atingiu ou não o objetivo colimado, mas não existe meta para medir a sua eficiência, ou seja, o custo que foi imposto ao erário e à sociedade pela sua eficácia. Essa liberdade é que permitiu ao Plano Real e à política econômica que o sucedeu após 1999 impor à Nação a enorme dívida pública federal, cujo valor líquido foi multiplicado por três em menos de oito anos, chegando a ultrapassar 38% do PIB em novembro deste ano (R$ 575 bilhões).
A ultrapassagem do teto para os custos fiscais decorrentes da execução das políticas do Banco Central deverá estar condicionada à consulta ao Conselho Monetário Nacional, ad referendum da Comissão Mista do Congresso Nacional.
As metas financeiras propostas imporiam um limite ao ônus que a execução da política monetária pode impor ao Tesouro Nacional, acabando com a irresponsabilidade fiscal que vem caracterizando a ação das autoridades monetárias na busca de seus objetivos.
Redução das competências múltiplas do Banco Central
A Lei nº 4.595, de 1964, concentra no Banco Central do Brasil as atribuições clássicas de uma autoridade monetária com mais duas outras distintas funções: a supervisão das instituições do sistema financeiro e a guarda e administração da reserva de divisas. O que sugerimos é que a função de supervisão bancária seja exercida por um outro órgão independente da autoridade monetária.
Ao acumular as funções de prestamista do sistema financeiro (própria da autoridade monetária) com a de supervisor das mesmas instituições (própria de uma agência reguladora como a Comissão de Valores Mobiliários – CVM), o BC assume atribuições conflitivas. Embora no passado possa ter sido importante essa concentração, por razões de falta de estrutura operacional, atualmente ela não se justifica mais. Hoje, isso apenas aumenta a dificuldade da ação fiscalizadora, pelo potencial conflito entre o objetivo de administração do meio circulante da autoridade monetária e a ação coatora da agência reguladora. Além disso, pela fiscalização ser dentro da estrutura do Banco, como é natural, uma atividade secundária frente à administração da moeda.
A mesma tendência de conceder “independência” aos bancos centrais durante a última década, vêm também privilegiando a separação da atividade de supervisão da autoridade monetária. Segundo pesquisa publicada pelo Banco Central do Brasil, em julho de 2000, em quarenta países pesquisados, apenas 13 mantinham a atividade de supervisão dentro de seus bancos centrais. Na América Latina, uma levantamento de 1997 mostrou que apenas cinco países (incluindo o Brasil) de um total de 17 ainda mantinham a supervisão bancária no banco central.
Há duas tradições no mundo em relação à relação entre banco central e supervisão bancária. A tradição histórica alemã influenciou diversos países, em especial os de sua área de influência (Áustria, Suíça e países escandinavos), no sentido de manter separadas as funções de política monetária e de supervisão. Já a tradição inglesa, com exceção do Canadá, explica os países que mantinham a supervisão bancária no BC (Austrália, Nova Zelândia, Hong Kong e Irlanda).
No entanto, mesmo a Inglaterra negou essa tradição ao conceder independência ao seu banco central em 1997, e decidiu separar a supervisão bancária da autoridade monetária. Após esse ano, também tomaram a mesma decisão a Austrália e a Coréia do Sul, mostrando a clara tendência da crescente entendimento de que as duas funções são incompatíveis em um banco central independente.
O exercício da atividade fiscalizadora sobre o sistema financeiro em conjunto com a de gestão de autoridade monetária apenas prejudica a transparência das duas funções, sem nenhuma vantagem. A fiscalização deve ser administrada por um órgão próprio, transformando o atual departamento de fiscalização do BCB em uma nova autarquia, nos mesmos moldes da Comissão de Valores Mobiliários – CVM.
Estrutura e mandato
Supondo a existência de dois órgãos dirigentes – um comitê de política monetária e uma diretoria executiva – seria importante que em ambos, seus dirigentes fossem mandatários, eleitos por comissão própria do Poder Legislativo dentre pessoas de notável saber técnico, vedada outra ocupação privada ou pública, exceto o magistério, inclusive no tempo de moratória pós-mandato. Mas é desejável que a indicação dos membros do comitê evite a homogeneidade de pensamento, mesmo que se privilegie a maioria de uma tendência, evitando a ausência de contraditório no colegiado. Também, ao contrário do previsto para o Banco da Inglaterra, não deve haver vedação ao seu exercício por servidor do próprio Banco Central do Brasil.
Os mandatos também devem ser coincidentes. A não coincidência de mandatos no comitê termina por promover apenas a extensão da política de um governo no mandato seguinte, pois a eventual mudança de tendência da maioria será sempre previsível com o final do mandato de um dos membros do colegiado. Na diretoria executiva essa coincidência é ainda mais desejável, pois evita atritos administrativos entre diretores de diversas tendências e diferentes modus operandi.
8. Conclusão
A independência do Banco Central do Brasil nos parece do ponto de vista democrático indesejável. Na essência essa independência tem significado uma “captura” de um importante aparelho do Estado por parte dos interesses hegemônicos do capital financeiro, como uma espécie de contrapartida pelas concessões democráticas que faz ao regime político e à natureza do Estado. Em todo o mundo, isso vem sendo parte de um processo histórico quase secular e que se acentuou na fase recente da chamada globalização financeira.
Assim como essa independência foi cobrada dos trabalhistas ingleses por ocasião de sua volta ao poder, em 1997, ela agora foi imposta, em meio a uma grave crise externa e fiscal, ao governo Lula. E se apresenta agora, no Brasil, com um arco de apoio político que torna sua adoção bastante provável.
Porém, apesar de sua natureza intrinsecamente antidemocrática, a forma de sua regulação pode vir a minorar seus aspectos mais maléficos para as instituições e a economia. Por isso, é possível – nessa correlação de forças e nas circunstâncias próprias da coalizão política de sustentação do novo governo – que a sua simples rejeição não seja politicamente a posição mais adequada.
Uma atitude de denúncia de sua verdadeira natureza associada à proposição de medidas regulatórias concretas, que minimizem a autonomia que o novo Banco Central passa a ter, diminuindo o seu poder e aumentando sua responsabilização frente aos poderes políticos, ao mesmo tempo em que limite o custo fiscal das políticas monetária e fiscal, talvez seja um caminho alternativo mais produtivo.