A recente apresentação do Programa de Investimento Logístico (PIL) pretende ser um marco da retomada da iniciativa por parte do governo Dilma. Seu objetivo é iniciar um largo programa de ampliação e melhoria de infraestrutura de transporte, condição estratégica necessária para dar sustentação à desejada retomada do crescimento.

O fato de o Programa adotar a modalidade de concessão para realização de seus diversos projetos vem, entretanto, sendo apontado pela grande mídia e pela oposição como prova de que o governo Dilma utiliza agora a “privatização” que a esquerda tanto combateu. Pretendem falsear a realidade para provar a superioridade do capital frente ao Estado, bem como para legitimar a prática deletéria dos governos Collor e FHC de alienar patrimônio público e reduzir a esfera de obrigações do Estado brasileiro como parte de seu programa neoliberal, que tantos resultados desastrosos trouxeram ao Brasil.

A nota examina o que a denominação “privatização” significou em sua origem e estabelece sua diferenciação em relação ao uso de concessões. A primeira como uma politica antiestatal e antinacional pertencente ao ideário neoliberal, e a concessão como um instrumento já consagrado de ação do Estado que não aliena patrimônio público nem retira do Estado a responsabilidade de planejar, regular e controlar a expansão da infraestrutura de transporte e energia, tal como adotada pelo Programa de Investimento Logístico (PIL). 

A definição de privatização e a sua origem nos governos Collor e FHC

O termo privatização foi introduzido no discurso político na década de 90 no contexto da política de redução do tamanho do Estado e do setor público dos governos Collor e FHC. Estava diretamente relacionada à venda das empresas estatais, que representavam o esteio do estado desenvolvimentista pré-neoliberalismo. Naquela época, após anos de crise fiscal e de estagnação econômica, as empresas estatais lutavam com grandes dificuldades para operar.  Inexistindo recursos do Estado para investir em suas empresas e não tendo elas acesso ao crédito externo (devido à inadimplência do Brasil com os bancos desde 1987), as estatais estavam com investimentos insuficientes para sua expansão e modernização, estruturas defasadas e dificuldades operacionais. Até mesmo o acesso a financiamento do BNDES foi-lhes proibido a partir de 1994, com o intuito de mais depressa estrangulá-las.

Aproveitando-se dessas circunstâncias, as estatais foram condenadas genericamente como ineficientes, devendo, em consequência, serem fechadas ou vendidas para o setor privado. Mesmo as estatais que ainda conseguiam recursos para operar com lucratividade, como era o caso da CSN, a Vale e todo o sistema Telebrás foram vendidas. E a Petrobras e o sistema Eletrobrás só escaparam da privatização graças à oposição da esquerda e de outros setores nacionalistas que lograram uma mobilização social para inviabilizar sua venda.

A privatização dos governos Collor e FHC consistiu em alienar parte do patrimônio público, representado pelo controle que o Estado exercia sobre essas empresas e que foram vendidas em leilão na bacia das almas. A mineradora Vale, por exemplo, considerada uma joia da coroa, uma empresa lucrativa e a primeira brasileira a se internacionalizar, foi vendida por um preço inferior ao volume de recursos que ela própria dispunha em caixa. Além disso, a eliminação de quase todas as estatais retirou do Estado um importante instrumento de ação macroeconômica de influenciar diretamente a atividade econômica, estabilizando, gerando investimento em setores fundamentais da economia de modo a sustentar o desenvolvimento e dar apoio ao próprio capital privado incapaz de realizar investimentos de longo prazo.

Não havendo capital privado disponível para aquisição das estatais, o governo FHC pôs a disposição dos potenciais compradores o financiamento do BNDES necessários para que as estatais fossem vendidas. Um financiamento que nada acrescentava ao investimento produtivo, apenas transferia a propriedade do já existente. Aqueles mesmos financiamentos que o BNDES era proibido de conceder às estatais para ampliar a produção. O governo FHC foi mais além: como os compradores privados ainda precisavam de mais recursos, mas que não os endividasse, o governo “orientou” fundos de pensão das estatais sobreviventes a entrarem nos leilões como sócios minoritários, o que permitiu ao governo escolher os “vencedores” desses leilões. Um processo de larga corrupção conhecido como  “privataria”.

Em resumo, mediante a política de privatização os governos Collor e FHC entregaram o patrimônio público sem contrapartida ao acréscimo de capacidade  do setor produtivo.. Fez também o Estado nacional abrir mão de parte de um poder que lhe é próprio: o  dever de intervir na atividade econômica, por meio de suas estatais, com o objetivo de estabilizar e direcionar a atividade econômica, quando necessário, a fim de evitar abusos e distorções que prejudiquem a vida de seu povo e a economia nacional e a promover o desenvolvimento.

A concessão como instrumento de gestão e veículo de investimento.

A concessão, assim como outras formas de ação do Estado na prestação de serviços públicos – como é o caso também das permissões – consiste na delegação de uma função pública de prover ou gerenciar a prestação de serviços públicos, nos termos e condições estabelecidas pelo governo. Em troca da cobrança de uma tarifa pela prestação de determinado serviço público por um prazo estabelecido, o investidor privado assume a operação e a manutenção de um patrimônio público (uma rodovia, ferrovia, dutos ou outros instalações como a geração de energia), patrimônio que, ao final da concessão é entregue de volta ao Poder Público, sem ônus. Em outros casos, o concessionário assume a construção do próprio bem público que será por ele operado. Também nessa modalidade as obras realizadas para prestação do serviço são bens públicos e serão entregues ao Estado ao fim da concessão, também sem nenhum ônus.

Ademais, a operação e a execução de obras e melhorias e o valor das tarifas cobradas são objeto de uma detalhada normatização no contrato da concessão, que estabelece as obrigações e direitos do Poder Público e do concessionário durante o contrato. Ao delegar a operação do serviço público, o Estado não se exime da responsabilidade pela quantidade, a qualidade e a modicidade do serviço prestado ao público.

O Estado não perde, com a delegação dada ao concessionário, o seu patrimônio já existente. Em certos casos, é a concessão que cria para ele um novo patrimônio, que sempre lhe pertencerá, sem nenhuma reserva.
O que justifica a delegação do Poder Público de certos serviços públicos é a facilidade com que age o investimento privado – livre dos controles próprios da administração pública – ou por outros objetivos relacionados à política econômica ou mesmo a deficiência ocasional de recursos públicos para o investimento direto.

No caso do Programa de Investimento Logístico existem os dois tipos de concessão, tanto para instalações públicas já constituídas como para aquelas que serão construídas ou ampliadas pelos próprios concessionários.
A escolha do instrumento da concessão se dá por vários motivos. Além do objetivo do Estado de usar o investidor privado para acelerar a prestação de um serviço público novo ou melhorado, há também o objetivos decorrentes da política econômica.

Neste momento especial, essa forma de delegação do Estado permite criar oportunidades para investimentos privados, que, em consequência da crise internacional, tem dificuldade de escolhas atrativas em empreendimentos de longo prazo. Ademais, o repasse do ônus do investimento também ajuda o governo federal a cumprir seu ajuste fiscal, o que permitirá alcançar as metas estabelecidas para os próximos anos e a retomada do crescimento econômico. Ao mesmo tempo, o governo inicia a ampliação e a melhoria da infraestrutura que serão necessárias ao novo ciclo de desenvolvimento.

Em resumo, a concessão é um instrumento que permite a melhoria e a ampliação do patrimônio público ligado à execução de serviços essenciais à vida da nação e a sua economia sem os retirar da responsabilidade própria do Estado de planejar, regular e controlar a prestação desses serviços públicos. E ainda permite, como é o caso das concessões previstas no Programa de Investimento Logístico (PIL),  atender a uma política econômica de criar oportunidades ao investimento privado de forma compatível com as políticas macroeconômicas atuais.

* Lecio Morais é economista, mestre em Ciência Política e assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.