No dia 26 de julho, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos lançou o Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais 2024, com ano-base de 2023. E informou que, no ano passado, o faturamento das estatais brasileiras foi de 1,25 trilhão de reais, com lucro líquido de 197,9 bilhões. O Banco do Brasil cresceu 9,1%, (lucro de 33,8 bi), a Caixa, 20%, (11,7 bi), e a Petrobras bateu recordes de produção: mesmo com a queda na cotação global do petróleo no período, teve o segundo melhor resultado de sua história (125,2 bi). O desempenho representou 5,75% do nosso Produto Interno Bruto em 2023.

Mas, mesmo diante destes números robustos, o editorial da Folha de S.Paulo do último domingo 25 foi imperativo ao exigir a privatização justamente destas três empresas públicas. O subtítulo dava o tom messiânico do texto: “Trio de gigantes deve ser o próximo tabu a ser derrubado no bem-sucedido programa brasileiro de desestatização”. Nenhum dos poucos mais de 2.500 caracteres do editorial, porém, fez qualquer referência ao relatório do MGI, que é público e está disponível para consulta há um mês.

O editorial me lembrou de argumentos do início do século XX, quando as elites brasileiras e consultores internacionais diziam que não havia petróleo explorável no Brasil, nem capacidade da nossa engenharia, ou de investimentos. E a Petrobras, por decisão política sustentada pelo grande movimento “O Petróleo é Nosso”, surgiu, avançou, destruiu os argumentos contrários e hoje ocupa lugar entre as maiores petrolíferas do mundo.

Também não é nenhum segredo (nem furo jornalístico) que parte da mídia hegemônica brasileira abraçou há décadas todo o ideário mágico-ideológico do neoliberalismo. Mas os fatos são os fatos e, ao mesmo tempo em que apontam o valor estratégico de empresas públicas como Petrobras, Caixa e BB (sonho de consumo dos rentistas), também mostram o que acontece quando o privatismo canibal avança sobre o bem público.

Um exemplo: em 2022, quando Adolfo Sachsida, então ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, propôs a privatização da Petrobras, a BBC Brasil publicou reportagem sobre os resultados da desestatização de companhias petrolíferas públicas de três países. Na Rússia pós-União Soviética, a privatização gerou um novo grupo de oligarcas que aprofundou a desigualdade no país. Na Argentina, houve queda na produção depois que a espanhola Repsol passou a controlar 57% da YPF a partir de 1999, com fuga de capitais e desinvestimento (a empresa foi reestatizada em 2012). Já na Inglaterra, a BP, privatizada entre 1979 e 1987 – no auge do período Margareth Thatcher – tornou-se um monstro que gerou desemprego e é alvo de múltiplos processos judiciais, seja por desastres ambientais monumentais ou por violações a diversas regulações civis e criminais.

Thatcher, a grande ideóloga deste modelo neoliberal decadente, não viveu para ver os resultados de outro grande processo de privatização no Reino Unido. Trinta e cinco anos após grupos particulares assumirem companhias públicas de água e esgoto, a população enfrenta uma infraestrutura sucateada, com água contaminada em rios e áreas costeiras, controladoras endividadas e sem capacidade de investimento. Setenta por cento dos britânicos são hoje a favor da reestatização. E esta é uma tendência global, apesar da ladainha privatista: nos últimos 15 anos, mais de 180 cidades de 37 países reestatizaram seus serviços públicos de água e saneamento privatizados, dos Estados Unidos ao Cazaquistão, comprovando que serviços essenciais devem ter o atendimento à população e o desenvolvimento nacional como principal propósito.

Já as estatais brasileiras têm se mostrado estratégicas para o plano de reconstrução de quem pensa o Brasil e seu povo – o governo Lula. São essenciais, por exemplo, para a execução do Novo PAC, com cerca de 20% dos investimentos previstos em infraestrutura e desenvolvimento. No ano passado, os bancos públicos voltaram a oferecer crédito de forma responsável, em linha com os principais programas governamentais, reativando investimentos de longo prazo. São mais de 430 mil empregos em todo o território nacional. As estatais ajudam, de várias formas, a movimentar o País.

Ainda assim, com todas as evidências em contrário, a Folha exige, em seu editorial, a privatização geral e irrestrita das empresas públicas. O que explica desejo tão anacrônico? Em seu clássico moderno Realismo Capitalista, o britânico Mark Fisher (crítico profundo do thatcherismo) nos lembra que “desde 2008, o neoliberalismo pode ter perdido o febril impulso para a frente que um dia possuiu, mas está longe de colapsar. Segue agora cambaleando como um zumbi”. E arremata: “mas como os fãs de filmes de zumbi sabem muito bem, às vezes é mais difícil matar um zumbi do que uma pessoa viva”.

Mesmo com todas as crises provocadas por seu modelo ultrapassado – da emergência climática aos refugiados de guerra, da fome aos imigrantes ilegais – o neoliberalismo ainda perambula por aí livremente, fazendo estragos em economias, corações e mentes. O maior perigo de se aceitar a tese do “fim da História” é não perceber que ela continuou a se mover; hoje, é a extrema-direita que rasteja em meio a essas crises, corroendo democracias por dentro, muitas vezes sem as devidas críticas e alertas.

Isso até explica certo fanatismo ideológico neoliberal por parte da nossa grande mídia, que reduz tudo a fórmulas simplificadoras e irreais (como a privatização e a crença absoluta no “mercado”), mas há também uma razão prática e bem concreta para justificar o editorial do último domingo. O título ecoa os planos mais sórdidos da Faria Lima, que se encantou (mais uma vez) pelo canto da sereia bolsonarista, agora travestida na truculência contida do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (aliás, grupos que também têm simpatia pelo desqualificado Pablo Marçal).

Dois dias antes da publicação do relatório do MGI, o homem que desestatizou a Sabesp declarou que “tem muito espaço” para o capital privado avançar sobre companhias públicas no Brasil – como BB e Petrobras. O editorial da Folha referenda este projeto – que é basicamente o mesmo de Paulo Guedes, condutor do desastre econômico dos anos Bolsonaro.

É hora de estarmos atentos: uma aliança semelhante entre o reacionarismo deixou nossa democracia à beira do colapso há pouco tempo e levou o País de volta ao mapa da fome. O zumbi do neoliberalismo continua à solta, agora em simbiose com a extrema-direita, cuspindo ódio, fake news e editoriais estranhos. Cabe a nós fazer a defesa do patrimônio público brasileiro e oferecer uma alternativa à assombração neoliberal que seja vibrante, criativa e diversa. O que nos move é a possibilidade de construção coletiva de um futuro mais justo, digno e próspero para todos, não apenas para um pequeno grupo de parasitas e oportunistas.


*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro, vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.