Rebecas, Bias, Flávias e as políticas públicas de esporte
Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos são a apoteose do esporte mundial. Nas últimas semanas, o Brasil parou, torceu, sofreu, sorriu e vibrou junto a nossos atletas nesse momento mágico de suas carreiras. Na sequência, será a vez de os atletas paralímpicos nos contagiarem.
Por trás de cada participante, está uma vida de dedicação, disciplina e privações que muitas vezes só é levada em conta quando o podium vem. Existem ainda dramas como o de Flávia Maria de Lima, do atletismo, que, além de tudo sofre com o machismo, em uma absurda disputa judicial na qual o ex-companheiro usa sua dedicação ao esporte para tentar lhe tirar a guarda da filha. A verdade é que, só de estarem ali, já são vencedoras e vencedores.
Confesso que fiquei especialmente emocionado ao ver duas mulheres negras, de origem humilde, conquistarem medalhas de ouro que encheram nosso país de orgulho. Mais do que as medalhas em si, Rebeca Andrade e Bia Souza souberam sintetizar as melhores características do povo brasileiro: perseverança, criatividade, humildade e alegria. Isso é importante, porque parte fundamental do despertar para o esporte tem relação com o exemplo, a inspiração.
Quando nos deparamos com eventos de tal magnitude, que mobiliza as atenções de bilhões de espetadores de todos os lugares do mundo, é natural entrar no embalo do “foco na medalha”. Contudo, o quadro de medalhas é mais uma convenção das transmissões televisivas do que o retrato mais bem acabado da prática esportiva de um país.
Por exemplo, uma medalha de ouro, nessa convenção, vale mais do que diversas pratas e bronzes. Não parece ser o mais fidedigno. A medalha de modalidade em equipe, como conquistamos na ginástica, vale apenas uma, mas quantas ou quantos medalhistas e possíveis medalhistas não foram formados para se chegar a tal resultado?
E mais: se um país ganha diversos ouros na mesma modalidade, pode até ficar frente na classificação da televisão, mas não quer dizer que seja superior a outra nação que tem medalhas ou boas campanhas em diversas modalidades, porque a diversificação de modalidades é retrato importante de uma sociedade em que a prática esportiva é mais disseminada.
Outro fator é que nossas divas Rebeca e Bia não são apenas exemplos de superação e habilidade. Elas são as pedras mais reluzentes de uma jazida bem mais ampla. Quantos milhares de esportistas não são necessários para que nasça uma Rebeca?
O esporte de alto rendimento é também consequência de políticas públicas feitas para a disseminação do esporte, pois é necessária uma br larga de crianças e jovens praticando esporte para que apareçam potenciais medalhistas. Nesse sentido, o programa Segundo Tempo foi um exemplo de política positiva de disseminação, feita em conjunto pelo governo federal e governos municipais e entidades. Foi em um projeto social implantado na cidade de Guarulhos, em parceria com o governo federal, que surgiu a primeira oportunidade para Rebeca Andrade, agora nossa maior medalhista na história. Ou seja, há mais chances de se formarem grandes atletas quando temos muitos atletas.
Descobertos aqueles que podem virar talentos, passa a ser fundamental outra política pública que dê apoio material, treinamento e condições adequadas para que o atleta se desenvolva e possa disputar em alto nível. Aqui entra o Bolsa Atleta, considerado por muitos estudiosos do tema como um dos maiores programas do gênero em todo o mundo.
Existem artigos científicos, produzidos por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Inteligência Esportiva, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que indicam a importância do programa Bolsa Atleta na trajetória dos atletas brasileiros, destacando a evolução dos resultados desportivos a partir de sua criação e o legado deixado pelos Jogos Rio 2016 nas políticas públicas de nosso País.
Para se ter uma ideia da centralidade das políticas públicas para a obtenção de resultados no alto rendimento, quase a totalidade das medalhas obtidas nos Jogos do Rio 2016 veio de atletas bolsistas. Os dados foram compilados no artigo Programas de financiamento ao atleta: uma perspectiva comparativa entre países e são eloquentes: das 19 medalhas nos Jogos Olímpicos Rio 2016, 18 (ou 95%) foram conquistadas ou tiveram participação de atletas do Bolsa-Atleta. Nos Jogos Paralímpicos da mesma edição, todas as 72 medalhas foram de bolsistas. (Moretti de Souza, 2024).
Nossos atletas são orgulho nacional, especialmente essas mulheres negras sensacionais, que fizeram nosso hino ecoar por Paris. Elas são superação, resiliência e as provas mais incontestáveis de que políticas públicas de esporte bem desenhadas são fundamentais para o País. Que esse exemplo contagie nossas crianças e jovens, trazendo a alegria de milhares de novas Rebecas e Bias.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB de São Paulo. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.