Aprovado no último dia 15 de julho, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que apurou violência contra jovens negros e pobres no Brasil, nos apresenta uma realidade brutal da violência no país, que nos desafia a elaborar ações urgentes para a superação dessa realidade.

A vergonhosa quantidade de mortes de jovens pelo país é o sintoma mais agudo de uma patologia social que sangra a dignidade brasileira, o racismo. Essa realidade suplanta o mito da cordialidade, a ideia de que a formação social e cultural no Brasil se deu a partir de democracia racial, para citar Gilberto Freyre.

Darcy Ribeiro, um dos nossos maiores antropólogos brasileiros, ao refletir sobre a formação do povo brasileiro, deixa claro que o conflito inflado por um pensamento dominante, vindo de uma elite branca e europeia, foi a tônica de nossa formação. Ao longo desses 515 anos e diante de gargalos sociais complexos, podemos dizer que vivemos em estado de guerra latente. Uma conjuntura que convoca tanto Estado como sociedade a refletir sobre os caminhos e escolhas feitas até aqui.

A história mostra que, ao longo de nossa formação, nosso sistema social construiu um racismo dos mais perversos, que supera a constatação da diferença, pois encontra mais força na desqualificação do outro. Um racismo silencioso.

Ao longo do século XX, período de importantes transformações sociais – com a modernização industrial, urbanização e ampliação das oportunidades educacionais e culturais -, não se observou nesse mesmo sentido uma trajetória de redução das desigualdades, sobretudo, das desigualdades raciais. Desse modo, para entender a gênese do racismo, que impregna nossa sociedade como um todo, capilarizando-se pelas artérias das instituições, é preciso recuperar a maneira pela qual nosso povo se formou, entendendo a naturalização dos preconceitos, apontando o posicionamento do Estado e traçando as saídas necessárias para a construção de um caminho outro.

Nesse sentido, ao ser implementada, a CPI do Jovem Negro e Pobre cumpre um papel institucional e de reconhecimento central para superar tal realidade. Ao mesmo tempo em que possibilita amplificação das vozes, historicamente, silenciadas, ela reconhece que existe, sim, um “genocídio simbólico” em nossa sociedade, herdeiro de nossa formação sociocultural e freio do nosso desenvolvimento. Uma realidade que, ao longo não de alguns meses ou anos, mas de séculos, vem negando a esses brasileiros os mais básicos serviços públicos.

Dados da violência contra a juventude

Nossa reflexão parte de dados concretos que assombram os diferentes setores sociais. O fenômeno de homicídios que vitimiza a juventude no Brasil, sobretudo, os jovens negros, se coloca como um dos problemas centrais para o avanço de nossa sociedade. Combater a violência, nesse momento, significa ir além das políticas de segurança, pois falamos aqui de toda uma geração que é privada de seu futuro.

Os dados da violência contra a juventude no Brasil são escandalosos e pioram quando a estatística analisa as mortes de jovens negros e pobres pelo país. Considerando os dados de 2004 a 2007, percebe-se que o número de mortes da juventude negra supera o de mortos na guerra do Afeganistão. Sendo que, de acordo com as estatísticas, os jovens negros morrem 3,7 vezes mais que os jovens brancos.

E os dados revelam mais. Para ter uma ideia, no Brasil, mais de um milhão de jovens foram vítimas de assassinato entre 1980 e 2010. Indo além, os homicídios são a principal causa de morte de jovens de 15 a 29 anos, atingindo, majoritariamente, o segmento de jovens negros e pobres.

Essa situação piora ainda mais quando verificamos os dados, publicados em 2014, pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Das 537.790 pessoas que estão no sistema penitenciário, 93,92% são homens, 60% são negros, 66% são pobres, 51% não tiveram acesso à escola. Esse é o número da vergonha, da exclusão e revela o caminho que esses, outrora jovens, foram compelidos a seguir.

Outro fator chocante nessa realidade é a elevação, significativa, das taxas de suicídios a partir dos 17 ou 18 anos de idade, com taxas bem acima da média nacional, em torno de 5 suicídios a cada 100 mil habitantes.

Além disso, o relatório da CPI do Jovem Negro e Pobre revelou que mais da metade (53,3%) dos 52.198 mortos por homicídios em 2011 no Brasil eram jovens, dos quais 71,44% eram negros (pretos e pardos) e 93,03% do sexo masculino. O Balanço de Gestão da Secretaria Nacional de Justiça cita dados de 2012, assim, em 2012, morreram 56.337 pessoas vítimas de homicídio, sendo 30.072 jovens – 53,4% do total. Destes jovens, 71,5% eram negros e 93,4% eram do sexo masculino.

Diante desse cenário brutal, na atual quadra, nossa luta por avanços passa, sobretudo, pela superação dos pilares que condicionaram a sociedade a uma situação de quarentena. E mais, estamos diante de uma chaga histórica que coloca em xeque a nossa condição civilizatória.

No que se refere ao racismo institucional, o relatório nos dá uma importante contribuição, pois mapeia, a partir de medidas de criminalização da juventude negra, os níveis de exclusão e assédio que sofrem esses jovens. Por essa lógica, ao racismo material somamos o racismo simbólico, pelo qual o povo negro se torna invisível. Apesar de representar parte significativa da população e do mercado de trabalho e consumidor.

E mais, o reconhecimento de que os órgãos públicos têm um papel importante na perpetuação das desigualdades permite compreender a importância do combate ao racismo institucional. Nesse sentido, identificar nas ações cotidianas dos órgãos públicos, as situações nas quais se manifestam os preconceitos e a discriminação racial direta e indireta se converte em um passo central para avançarmos nessa agenda.

Vencendo uma herança voluntarista

O combate ao racismo no Brasil é tão antigo quanto sua história. A Constituição Federal de 1988 reconheceu a criminalização do racismo – que posteriormente definiu os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor com a Lei no 7.716/1989. Além disso, o reconhecimento ao direito de posse da terra às comunidades quilombolas e a criação de instituições como a Fundação Cultural Palmares, foram passos importantes na luta de combate ao racismo. Tais ações são fruto da luta incansável da sociedade civil organizada e se caracteriza como o início de um processo de reconhecimento e de reparações, em sua maioria, ainda pendentes de serem realizadas.

Outro sopro nas velas dessa luta foi a criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) [¹]. Estabelecida pela Medida Provisória n° 111, de 21 de março de 2003, convertida na Lei no 10.678, a Seppir nasce do reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro brasileiro. É importante lembrar que a data de criação da Seppir é emblemática, pois em todo o mundo celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O relatório ainda aponta, como ação importante no combate à violência, o fortalecimento do Plano Nacional de Juventude, proposto pelo governo federal. Para nós um instrumento importante para o enfrentamento ao problema da violência contra os jovens negros no país. Na mesma linha, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), instituído pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei no 12.288/2010), representa uma forma de organização e articulação estratégica, que pavimenta a implementação de um conjunto de políticas e serviços para superar as desigualdades raciais no Brasil, e, consequentemente, a violência brutal em nossos estados.

Além disso, com o objetivo de apresentar medidas concretas de enfrentamento aos homicídios de jovens negros e pobres no Brasil, a CPI elaborou a proposta de Projeto de Lei (PL) que tem por finalidade estabelecer o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens. Uma das principais sugestões que trazemos é a realização de um recorte racial para que as ações do plano priorizem a população negra.

Associado a essa proposta, a Comissão também indicou, ao Poder Executivo, metas globais e setoriais, como elementos fundamentais para mensurar a realidade daqui para frente. Partimos, portanto, do pressuposto que o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens terá como horizonte elaborar, em conjunto com os setores mais amplos da sociedade e o Estado, ações que possam dar conta dos desafios encontrados.

É importante acentuar que estados e municípios também deverão elaborar seu respectivo plano de forma articulada entre si. Com essa medida, esperamos uma ação integrada e convergente em prol da diminuição dos homicídios de forma efetiva, eficaz e eficiente.

No nosso entendimento, a principal contribuição da Comissão residiu em apresentar um documento de diretrizes, que partiu da realidade de jovens, pais e mães, que sofrem, diariamente, com a violência. Nosso esforço está em propor um ação que se constitua em avanço no combate à desigualdade, raiz histórica da violência.

Uma luta em curso

Decorridos mais de dez anos da criação da Seppir, é possível notar a existência de avanços significativos, mas ainda há um longo caminho pela frente. Os dados da violência comprovam isso. É necessário, portanto, pensarmos em dar a escala que essas medidas realmente precisam.

O cenário narrado revela o desafio de se superar políticas voluntaristas e fortalecer as políticas públicas de promoção da igualdade no Brasil. Dentre os caminhos apontados pelo relatório da CPI do Jovem Negro e Pobre, está a criação um Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos.

O Fundo proposto pela CPI tem como objetivo primordial financiar a Política de Igualdade Racial, proporcionando as condições necessárias para que a Seppir e a Fundação Cultural Palmares, bem como os demais órgãos, possam vir a exercer suas atribuições de forma plena, eficaz e continuada. Já que a promoção e o fortalecimento das políticas de combate ao racismo e ao preconceito se apresentam como elementos estratégicos na constituição de um projeto nacional de desenvolvimento, que abarque em seu interior todas as formas de interação da sociedade brasileira com suas forças produtivas.

As mulheres negras, por exemplo, são a maioria entre as mulheres pobres e exploradas da sociedade brasileira e com isso se tornam também as principais demandantes de reformas estruturais que democratizem e promovam as condições dignas para viver em nossa sociedade.

Após esse período de conquistas (2003-2015), está na hora de avançar. A sociedade brasileira, o poder público e as organizações sociais precisam se unir para repensar o modelo de desenvolvimento em curso, o qual deverá dar conta do amadurecimento da democracia. É preciso ampliar e fortalecer as políticas públicas de combate ao racismo e ao preconceito, é preciso derrubar o véu que esconde essa chaga social, só assim avançaremos.

E mais, não poderemos falar em democracia forte, projeto nacional de desenvolvimento e avanço social sem superar a herança brutal que a desigualdade impôs ao nosso país nestes 515 anos, que se revela na motivação racista que existe no extermínio da juventude negra nas periferias das grandes cidades.

________________________________________________________________________________

[¹] Dentre os avanços alcançados pelo Seppir destacam-se a realização de conferências nacionais de promoção de igualdade racial em 2005, 2009 e 2013, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010 e a articulação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que levou às cotas em concursos e universidades públicas. Sem contar a criação de programas de vital importância como o “Saúde da População Negra”, o “Brasil Quilombola” e o Programa Cultura Afro-Brasileira.

*Orlando Silva é deputado federal do PCdoB pelo estado de São Paulo.
**Artigo publicado originalmente na Revista Princípios.