Lembrar o passado, reconstruir o futuro
Democracia é a palavra que mais tem sido falada no Brasil na última década. Uns para defendê-la; outros, viúvos do autoritarismo, para violentá-la.
Este 1º de abril marca os 60 anos do início do pior período de trevas da História do Brasil. A deposição de um presidente legítimo, João Goulart, começou com uma farsa. Por suas ações em defesa das necessárias reformas de base, e pela história que tinha como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, Jango foi carimbado como “ameaça comunista”.
Na verdade, um Brasil desenvolvido e soberano era um obstáculo aos planos imperialistas norte-americanos; o Departamento de Estado e a CIA não pouparam esforços para dar sustentação ao golpe militar daqueles tristes dias, em 1964.
Sob esse regime ditatorial, a pobreza aumentou, a concentração de renda tornou-se brutal e a censura, rotineira. Asfixiaram a política com o fechamento do Congresso e adotaram as práticas terríveis da tortura e de assassinatos, condenadas internacionalmente ontem e sempre. Mas era em nome de uma mítica “legalidade democrática” que generais, almirantes, brigadeiros desfilavam no comando do Estado brasileiro e perseguiam qualquer oposição: professores, estudantes, pesquisadores, militantes da luta social, sindicalistas, camponeses, indígenas… Qualquer voz que se levantava contra o “regime” devia ser imediatamente sufocada. Nas barbas do autoritarismo, Chico Buarque e Milton Nascimento expressavam a angústia da nação amordaçada: “Pai, afasta de mim este cálice”, música censurada por D.Marina, censora à época.
O Partido Comunista do Brasil e outras entidades políticas, como a UNE, ficaram na clandestinidade. A sede da UNE foi incendiada. Na política “oficial”, era permitido apenas o bipartidarismo expresso nas legendas da ARENA e do MDB, que por um bom tempo nem eleições puderam disputar. Para amortecer consciências, os ditadores empobreceram os currículos escolares, acumpliciaram-se aos meios de comunicação e à elite econômica. Em troca, muita dor e sofrimento: vidas foram sequestradas, retiradas de suas famílias, desaparecidas para sempre.
É preciso lembrar de tudo, para que nunca mais se repita. Depois do golpe de 1964 que depôs Jango, apoiado por parte da sociedade civil, houve uma sequência de Atos Institucionais, imposições que foram cerceando, pouco a pouco, todas as liberdades. O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, foi o golpe dentro do golpe, o ato final, a senha macabra que possibilitou as maiores barbaridades já ocorridas em solo brasileiro.
A ideologia de segurança nacional era divulgada massivamente nas redes nacionais de rádio e TV. Forças Armadas, Igreja conservadora, empresariado reacionário e a “mão invisível” dos Estados Unidos deram sustentação ao regime de exceção por 21 anos. E deixaram um legado que é, ou ao menos deveria ser, inesquecível: a Casa da Morte; as operações Bandeirantes e Condor; os corpos incinerados na Usina Cambahyba, em Campos; os sanguinários Doi-Codis e a imoral polícia política; as bombas na OAB do Rio de Janeiro (que ceifaram a vida de D.Lida Monteiro) e também no Riocentro, que explodiram no colo de quem ia colocá-la no show do 1º de maio, colocando em risco a vida de muitos. Há uma lista volumosa de crimes hediondos cometidos nestes 21 anos de trevas. E quando o movimento pela volta da democracia começou a crescer, a linha dura de Sylvio Frota resistiu como pôde à abertura.
Entorpeceram uma geração inteira. Se não contarmos esta história de forma viva e fizermos Justiça, como fizeram outras democracias, a sociedade brasileira não ganhará conhecimento e consciência para evitar uma desgraça dessas outra vez. Falar do passado e da História do País é reconstruir o futuro em bases mais sólidas.
A anistia que foi conquistada em 1979 deixou uma importante dívida com o nosso povo. Trouxemos de volta exilados e libertamos presos políticos, mas os torturadores e assassinos da ditadura não foram punidos. Permaneceram livres para reproduzir, ao longo das últimas décadas, sua doutrina antidemocrática e fascista. Hoje, buscam reproduzir o golpismo em novos formatos. Em 2015 e 2016, passamos pelo golpe institucional que apeou Dilma Rousseff da Presidência da República sem ter cometido qualquer crime. No ano passado, no dia 8 de Janeiro, vimos a expressão mais dramática destas violações à democracia. Uma trama construída, mais uma vez, com empresários reacionários, setores religiosos fundamentalistas, grupos de militares de alta patente e o suporte infame e mentiroso de uma comunicação digital desregulamentada.
O comandante do golpe foi o senhor Jair Bolsonaro. Ele atiçou, planejou, tentou unificar o alto comando contra a democracia e, depois que não conseguiu apoio internacional, simplesmente fugiu – não sem antes desviar uma grande soma em patrimônio público, em mais um de seus atos de corrupção. Agora, quando as investigações contra ele apertam, o que faz o sujeito? Tenta fugir novamente, apelando para a embaixada da Hungria – comportamento típico dos covardes!
Até quando teremos esses rasgos autoritários contra a nossa democracia? Até quando vamos esquecer que uma luta no campo, como a do Araguaia, terminou com milhares de militares em campanha assassinando 60 jovens? Até quando vamos permitir o desconhecimento pleno da história de tantas brasileiras e brasileiros que lutaram por nós e pela nossa liberdade de expressão, organização e luta? Até quando esses viúvos da ditadura terão voz para mentir à sociedade?
É preciso contar, divulgar, criar memória, desapropriar espaços de tortura para que, ao conhecer, nunca mais se permita que aconteça. E aos velhos novos golpistas: sem perdão! Sem anistia!
Viva o jovem José Guimarães, da Faculdade de Filosofia de São Paulo; viva o secundarista de 17 anos Edson Luís: dois estudantes assassinados e simbólicos da resistência popular contra a ditadura e da passeata dos 100 mil. Viva Honestino Guimarães! Viva Loreta Valadares! Viva Haroldo Lima! Viva Rubens Paiva, deputado que dedicou sua luta à restauração da democracia! viva Vladimir Herzog! Viva Helenira! Viva Osvaldão! Viva Fernando Santa Cruz! Viva Amélia Telles! Viva Dinaelza! Viva Angelo Arroyo e Pedro Pomar, executados na emboscada da Chacina da Lapa! Viva Stuart Angel e Zuzu Angel, a mãe que usou a arte e a coragem para denunciar o desaparecimento de seu filho, e seguiu à procura até o acidente, forjado pelos agentes da ditadura, que lhe tirou a vida. E vivam tantas outras mães, irmãs, companheiras, filhas que até hoje esperam a verdade sobre seus familiares e justiça para os algozes, para fazerem seu luto em paz.
É preciso reinstalar a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, em respeito e honra às vítimas da ditadura e seus familiares. Tantas mulheres e homens que nos permitem, hoje, respirar e lutar por uma democracia de fato, que não deve ser apenas representativa e nem se limitar ao direito de votar. É necessária uma democracia inclusiva, que respeite os direitos fundamentais, que supere o racismo e a misoginia, que tenha a maioria trabalhadora dando o rumo da nossa Nação, em que a Cultura, a Educação e a Ciência sejam referências: uma Nação desenvolvida, democrática e com felicidade. Chega de ódio, restrições, violência e mentiras. É preciso mais direitos, mais amor e paz.
*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB-RJ e vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.