É hora de reconhecer o cuidado materno
Acabamos de comemorar o Dia das Mães ainda sob o impacto das imagens do desastre ambiental no Rio Grande do Sul. Nós, mães brasileiras que tivemos a oportunidade de estar com nossos filhos no conforto de nossos lares, podemos vislumbrar a dor e a desesperança que tomou conta das mães gaúchas neste momento tão delicado.
O Brasil se uniu numa corrente de solidariedade e o volume de doações cresce a cada dia. O governo federal buscou a imediata integração com os governos locais e o Congresso aprovou mediadas necessárias ao investimento naquele estado. Como em outras situações dramáticas, são as mulheres as mais atingidas e as que oferecem suporte aos seus mesmo que as forças lhes faltem. De algum lugar desconhecido recolhem a energia para permanecerem na função que o mundo patriarcal lhes delegou: o cuidado.
Uma tarefa invisibilizada e ainda pouquíssimo dividida recai sobre esta parcela da sociedade que, por vezes, esquece de si para acolher e amparar o outro. Enquanto avançamos lentamente no debate para a divisão de tarefas, salários iguais para as mesmas funções e igualdade de condições para o acesso ao mercado de trabalho, o mercado tenta calar e impedir as condições para a concessão de direitos.
De acordo com a OIT, em 2030, 2,3 bilhões de pessoas demandarão cuidado ao redor do mundo. São 12,5 bilhões de horas de um trabalho não remunerado realizado por mulheres e meninas, segundo dados da Oxfam. Estudos mostram que nosso PIB poderia aumentar 11% em 2015 se o trabalho reprodutivo fosse contabilizado. E não para por aí.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, de 2022, aponta que mulheres brasileiras dedicam quase o dobro de tempo que os homens aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas. São 21,3 horas semanais, contra 11,7 horas, em média. E para a surpresa de zero pessoas, os homens gastam mais tempo cumprindo tarefas domésticas quando moram sozinhos. Já as mulheres têm mais trabalho quando dividem o lar com alguém.
Mas, concentro-me aqui no direito previdenciário. Em 1988, nossa Constituição determinou a diferença de 5 anos entre os sexos feminino e masculino para fins de aposentadoria. Não só pela questão da maternidade, mas pela dupla jornada que enfrentam. É delas um trabalho extra, não remunerado, que se transforma em maior desgaste e envelhecimento precoce. Já em 1996, teve início um acalorado debate que pretendia por fim a este tempo diferenciado. Os argumentos, que ainda hoje tentam impor, alardeavam que já não havia sustentação para este direito. Em décadas de tentativas, o direito se manteve, mas a última reforma tornou quase impossível atingir a aposentadoria.
Para um benefício integral que corresponda ao histórico contributivo do segurado, estamos falando de 40 anos de contribuição. Quarenta anos! Se para os homens já é uma missão praticamente impossível a partir da informalização do mercado de trabalho, imaginem para as mulheres, historicamente preteridas no acesso a um vínculo formal. Restou a elas a aposentadoria proporcional (valor menor) ou por idade, aos 62 anos, com a exigência de 15 anos de contribuição como carência. Mesmo assim, as dificuldades são enormes.
Aqui, e é com tristeza que constato, ainda impera a visão de que os homens são mais produtivos, que não faltam tanto ao trabalho para cuidar dos filhos e uma infinidade de outros argumentos machistas e distantes da realidade. Após a reforma trabalhista, conseguir uma vaga formal de trabalho ficou ainda mais difícil, para homens e mulheres. Mas, são as mulheres que mais sofrem com esta dura mudança.
São várias as facetas que indicam a urgência de promover uma lei que proteja as mulheres e reconheça o cuidado materno. E o que defendemos é totalmente factível. Propomos que as mulheres com 62 anos ou mais, que comprovem ter filhos ou equiparados, possam ter o benefício da aposentadoria mediante o parcelamento, em até 60 meses, sem juros ou multa, das contribuições que faltam para atingir a carência de 15 anos. Nada mais justo. O Brasil já adota esta prática de parcelamento para grandes devedores da previdência e é correto que a coloque em prática para garantir o direito previdenciário dessas mulheres que não conseguiram atingir os 15 anos de contribuição.
Aos que só enxergam mais uma “despesa” a inviabilizar o ajuste fiscal, peço que olhem para a situação das mulheres e as suas próprias. Que reconheçam quantas perdem os empregos assim que a estabilidade pós licença maternidade se encerra. A dificuldade que têm, com filhos ainda pequenos, de conseguir uma nova colocação. Que deem valor a quem cuida, a quem dedica parte considerável de seu tempo a tarefas que propiciam aos outros liberdade para se desenvolverem, estudarem e trabalharem. A parcela da sociedade responsável pelo cuidados dos idosos e das pessoas com deficiência na família.
Esta responsabilidade é reconhecida pelos empregadores apenas no momento de optar entre um homem e uma mulher para uma vaga. Ainda que a mulher tenha melhor qualificação, ela perderá pontos ao se considerar que será ela a faltar no trabalho para acompanhar filhos, pais e marido para o atendimento médico. Que ela poderá engravidar e gerar “despesa” para a empresa durante seu afastamento para consultas de pré natal e para a licença maternidade. Para outros efeitos, esta teia de tarefas é invisível e desconsiderada.
Não queremos muito. Pedimos o reconhecimento de um trabalho que sustenta a sociedade. Que o benefício dado a grandes devedores seja aplicado também para garantir o direito previdenciário das mulheres. Não de graça. Haverá contribuição. Se hoje parece pedir demais, amanhã estou certa que, a exemplo de inúmeros outros países que já estabeleceram legislações neste sentido, também celebraremos, finalmente, que a função social da maternidade foi reconhecida.
*Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro e vice-presidente nacional da legenda. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.