Desumanizar para justificar! Novamente, duas guerras…
Ano passado, quando estourou a guerra entre Rússia e Ucrânia, escrevi um artigo do qual me recordei imediatamente ao ver a escalada de violência absurda entre Israel e Palestina. “Para além do conflito armado, há uma outra guerra em curso: a da informação, ou da desinformação”. Penso que esta “batalha de narrativas”, sempre trágica, também vale para o atual confronto. Para qualquer situação bélica, aliás: a frase “numa guerra, a primeira vítima é a verdade” é atribuída ao grego Ésquilo, que viveu no século VI antes de Cristo.
Temos visto em discursos, matérias e editoriais ataques infundados à esquerda brasileira, desconhecendo o histórico de nossas posições em relação à crise humanitária vivida pela Palestina há mais de sete décadas. Em 1947, a ONU votou a resolução de criação dos dois Estados – Israel e Palestina. De lá para cá, o país nunca teve as diversas resoluções respeitadas. A ocupação militar de Israel naquele território foi mantida, como também as de colonos sionistas. Os palestinos perderam direito à parte dos próprios territórios e outros direitos fundamentais. A seletividade de opiniões e de muitas coberturas demonstra falta de conhecimento histórico, posição ideológica clara ou, em alguns casos, má fé.
Em nenhum momento a posição e atentados do Hamas passaram sem opinião. Eu mesma fiz um discurso na tribuna da Câmara condenando os terrorismos – de grupos e de Estado. A moção que aprovamos na Câmara, assinadas pelo PT, PCdoB E PSOL, deixou clara a condenação aos ataques do Hamas e do Estado de Israel a civis:
“Solicito a Vossa Excelência, nos termos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, ouvido o Plenário, que seja registrada, nos anais desta Casa, Moção que repudia a violência do Hamas e do Estado de Israel, que resultou na morte de centenas de civis em território israelense e palestino, inclusive de cidadão brasileiro, bem como o recrudescimento dos conflitos na região, ao passo em que insta as Partes e a comunidade internacional a buscarem a paz, a ser alcançada de forma duradoura pelo reconhecimento de dois Estados para dois povos.”
Ódio gera mais ódio
Mentiras alimentadas por ódio sempre geram mais ódio – às vezes em escala exponencial, como estamos presenciando em Gaza e no mundo todo. Uma criança foi morta a facadas nos EUA por um extremista – sua mãe está hospitalizada – apenas pelo fato de ser muçulmana. A cobertura enviesada da imprensa e a onda de desinformação nas redes contribui para espalhar o ódio. Por isso mesmo, é tão importante, neste momento, conter não só a escalada do conflito nos territórios israelense e palestino, mas também interromper a máquina de propaganda e restabelecer a verdade dos fatos, para termos uma compreensão exata de como chegamos a este ponto.
E a verdade é que, há sete décadas, Israel submete os palestinos na Faixa de Gaza e Cisjordânia a um permanente e progressivo estado de terror. Particularmente na Faixa de Gaza vivem confinados, sem liberdade de ir e vir do território, quase sempre com limitações de alimentos, assistência de saúde, água, eletricidade, alimentos e combustível, em condições que aviltam a dignidade humana. Desde 2005, há um completo bloqueio terrestre, aéreo e marítimo imposto sobre o território. É o maior campo de concentração a céu aberto do mundo. Durante todo este tempo os acordos foram desrespeitados. Em consequência, houve desgaste e fragilização da autoridade palestina e crescimento de grupos extremistas, que sobre a desesperança do povo, cresceram e passaram a comandar Gaza.
A maioria dos israelenses quer a paz assim como a maioria dos palestinos, mas, nos últimos anos, milícias sionistas radicais intensificaram a expropriação de terras, expulsando, humilhando e assassinando milhares de pessoas, numa escala muito superior às baixas que Israel sofreu ao longo deste período. Segundo a ONU, entre 2008 e 2020, morreram mais de 5000 palestinos e 259 israelenses. Uma vida é muito importante, seja de que religião, território ou continente. Mas esses dados mostram a desproporção e a realidade vivida pelo povo palestino.
Contra todos os terrorismos
Ainda assim, não há como apoiar os ataques perpetrados pelo Hamas desde o dia 7 de outubro, que vitimaram, até aqui, ao menos 1.400 israelenses, a maior parte, civis. Assim como nada justifica o verdadeiro massacre coletivo imposto aos 2,2 milhões de moradores de Gaza. Massacre, pois não há outra palavra para definir o uso da força bélica israelense, incrivelmente superior, à população palestina. Sem falar no apoio imperialista de Estados Unidos e parte da Europa.
Impedidos de sair, só tem restado aos palestinos escrever desesperadas mensagens de despedida nas redes sociais, e rezar para não serem bombardeados pelas forças de Benjamin Netanyahu, que exerce um verdadeiro terrorismo de Estado contra o povo palestino. São ao menos 3.500 mortos do lado palestino até aqui, entre eles, mais de 1.000 crianças. Um jornalista foi cobrir um bombardeio em Gaza: dentro do prédio destruído, encontrou 15 familiares mortos. Esta é a dimensão do drama humanitário.
Porém, ao noticiar preferencialmente o lado de Israel, especialmente nos dias iniciais da guerra, sem contextualizar corretamente o conflito, a mídia brasileira concorre para ajudar na desumanização dos palestinos, naturalizando seu extermínio – um prato cheio para a extrema direita, que menospreza suas vidas, como se fossem pertencentes à uma sub raça. Na TV, semana passada, um israelense chamou os palestinos de “animais” ao vivo, sem contestação dos entrevistadores. E um comentarista da Globonews, correspondente em Nova York, disse que “não se pode comparar o que acontece com os civis israelenses e os civis palestinos”, e ainda se posicionou contra o cessar fogo, pois ajudaria o Hamas. Isso não pode terminar bem.
A autoridade de Israel anunciou o objetivo de anexação de territorio palestino e ameaçou a todos que o enfrentarem. Objetivos geopolíticos e a possível regionalização da guerra precisam ser observados neste trágico conflito. O papel da imprensa é informar, não torcer por um lado, nem distorcer a realidade. Não contar a verdadeira história da ocupação da Palestina por Israel e os cerceamentos e crimes cometidos contra os palestinos durante todas essas décadas, afasta ainda mais a compreensão da necessidade de um entendimento pela paz. Ao contrário: induz pessoas ao erro, alimenta ressentimentos, amplifica fake news. E são muitas as mentiras, distorções e omissões no momento.
Uma última verdade sobre esta questão: a atuação do governo brasileiro nesta crise tem sido exemplar. Mesmo sob ataques e cobranças infundadas de setores da extrema-direita, alguns amplificados pela grande imprensa, a realidade é que a diplomacia do país tem conseguido repatriar seus cidadãos em segurança. O próprio presidente Lula, pessoalmente, tem construído diálogos para salvar a vida dos brasileiros que estão em Gaza. Torço para que os incansáveis apelos de Lula pela paz e a coordenação brasileira no Conselho de Segurança da ONU tragam logo bons resultados, que garantam de imediato o corredor humanitário para entrada de insumos alimentares e de saúde, mas que também permitam a saída de pessoas que precisam proteger suas vidas.
É preciso que o mundo se manifeste pela paz, pelo cessar fogo, pela retomada do diálogo e independência dos dois estados, com a libertação do estado Palestino, para que tenha independência e soberania e possa conviver com o já reconhecido Estado de Israel. Que os povos judeu e árabe possam se dar as mãos e conviver em harmonia. Para isso, é preciso superar as duas guerras, a bélica e a comunicacional. A maioria das pessoas quer a paz. Dois países para dois povos irmãos.
*Jandira Feghali é líder do PCdoB na Câmara e deputada federal pelo Rio. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.