Não faz o menor sentido. Uma semana após o governo anunciar um ajuste fiscal de 70 bilhões de reais para os próximos dois anos, o Banco Central decidiu aplicar um “choque de juros” cruel na economia brasileira: aumentou a taxa básica em um ponto percentual, com previsão de mais dois aumentos da mesma “magnitude” para os próximos meses (em março, a Selic poderá chegar a surreais 14,25%). Como justificativa, o Comitê de Política Monetária citou a economia aquecida (!) e o desemprego em baixa (!!) como fatores de “risco inflacionário”. Não via algo tão nonsense desde os filmes do Monty Python. Ao menos estes eram engraçados.

Faz menos sentido ainda se olharmos os números de dois anos atrás: em maio de 2022, a Selic também foi elevada em um ponto e chegou a 12,75%; já a inflação, sob o desgoverno de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, era de 11,73%. Na época, o presidente do Banco Central “autônomo e independente” era o mesmo Roberto Campos Neto que comandou o aumento da última semana. A diferença é que a inflação hoje é muito menor: 4,87% acumulados nos últimos 12 meses. Se lembrarmos que cada ponto percentual da taxa básica de juros representa 40 bilhões de reais que deixam de entrar na economia para pagar títulos da dívida pública e engordar os bolsos de especuladores, não fica difícil concluir que o BC de Campos Neto não quer deixar o País se desenvolver.

O setor produtivo não se conforma. “É um ataque especulativo contra a economia brasileira”, reclamou o diretor de desenvolvimento da Confederação Nacional da Indústria, Rafael Lucchesi, um dia após o anúncio do Copom. A jornalista Flávia Oliveira foi ainda mais explícita. “O Banco Central quer produzir uma recessão.” Não há como discordar das duas opiniões. Nem como negar que o mercado financeiro aposta contra o País.

Na semana anterior, as reações apocalípticas ao ajuste anunciado pelo ministro Fernando Haddad já haviam sido reveladoras da voracidade do “andar de cima” do Brasil. Consideram irrisório o polêmico ajuste, sob a ótica dos seus interesses de acumulação cada vez maior. Os preceitos são irreais e distantes da realidade vivida pela sociedade, como qualquer privatização de água ou energia demonstra; ainda assim, economistas-faria-limers, jornalistas-corporativos e outros representantes do rentismo continuam a guiar-se cegamente pela cartilha neoliberal, na qual parece haver uma única lição, praticada há décadas e traduzida em verso por um antigo sucesso popular: “é que o de cima sobe e o de baixo desce”.

Os “de cima”, os super-ricos, reagem. Sonham com um mundo que retroceda ao início da Revolução Industrial, quando o trabalho extenuante e mal-remunerado era a regra e apenas os mais fortes (e endinheirados) tinham direitos. Para isso, tentam anular todas as conquistas populares e coletivas dos últimos 200 anos, do salário mínimo ao direito à vida. E não importa que a fórmula neoliberal tenha se esgotado e deixado, como legado, o mundo em que vivemos, com retrocessos econômicos, desigualdade social, extremismo político e o clima à beira do colapso. O negócio é ganhar dinheiro, não importa que o mundo acabe mais cedo.

Os devotos do “mercado” simplesmente não conseguem enxergar o desastre que esta neo-acumulação primitiva do capital tem causado. Negam a emergência climática, viram o rosto para o genocídio em Gaza e no Líbano, defendem a desregulação nociva das plataformas digitais, normalizam o fascismo de Trumps e Bolsonaros. Mas são implacáveis com qualquer tentativa de justiça social. Um grande jornal elogiou recentemente a “lição de disciplina fiscal” de Javier Milei na Argentina, em editorial que aplaudiu a truculência do desmonte estatal do extremista para gerar superávit, mesmo que à custa de empurrar mais da metade da população para baixo da linha da pobreza. Comentaristas econômicos alinhados ao rentismo e com largo espaço na mídia lamentam que o Brasil não siga pelo mesmo caminho.

Para o “mercado”, não importa que o nível de desemprego registrado pelo IBGE em outubro tenha sido o menor da série histórica, iniciada em 2012. Nem que os índices de pobreza e a miséria no Brasil sejam os mais baixos já registrados. Ou que a projeção de piso do crescimento do PIB para 2024 supere as sua precisões, maior que a média mundial. E que o País seja o segundo do mundo com maior fluxo de investimentos estrangeiros diretos neste ano, segundo a OCDE. Qualquer desavisado que tenha lido as manchetes das últimas duas semanas sem conhecer o contexto real do País, certamente pensou que estamos à beira do abismo. Uma construção planejada para desestabilizar o governo. Já vimos este filme e ele não acaba bem.

O “mercado” (privado), que ficou “desconfortável” por não ver saciado seu desejo de controle absoluto sobre as contas (públicas) no ajuste, também enlouqueceu ao saber da nova isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais por mês – uma medida que beneficiará diretamente 26 milhões de pessoas – e surtou ainda mais com a nova taxação mínima para os que recebem mais de 50 mil reais mensais (tudo ainda a ser aprovado pelo Congresso).

A isenção foi considerada “populista” e os cortes, “insuficientes”. Já o dólar, que neste ano já subiu cinco vezes acima da inflação, bateu 6 reais, diante da inércia do Banco Central, e os “especialistas” da mídia adesista correram para culpar o governo por não ter feito o que o “mercado” esperava. As coisas só mudaram quando o presidente Lula baixou no hospital na semana passada para um bem-sucedido procedimento de emergência. Houve queda do dólar e alta da Bolsa na quinta-feira, classificada pelo jornalista Xico Sá como “o dia em que a Faria Lima especulou sobre a morte de Lula”.

E o atual presidente do Banco Central – que enfim deixará o cargo ao fim deste ano – tem muita responsabilidade nessa guerra do mercado financeiro contra o país. Roberto Campos Neto é um fanático do evangelho rentista, com interesses políticos confessos: até se auto-escalou como ministro da Fazenda de uma eventual presidência do bolsonarista Tarcísio de Freitas. Mas, a julgar pela última pesquisa Quaest, o “mercado” terá trabalho para eleger seus favoritos: Lula vence qualquer adversário em 2026. Haja sabotagem para derrotá-lo.

É preciso enfrentar os privilegiados e distribuir melhor a renda no Brasil. Para isso, será necessário rever a autonomia de um Banco Central que se distanciou, nos últimos anos, de seu papel na economia: promover o desenvolvimento sustentável do País. Os idólatras do “deus mercado” certamente vão gritar e seguir com sua fabulação de fake news pavorosas, como sempre, diante da própria falência moral. Cabe a nós evidenciar duas coisas fundamentais: economia não é uma ciência exata e a função de um governo não é dar lucro para oligarcas. A grita recente contra o fim da escala seis por um, que ganhou adesão imediata da população, é um exemplo claro de que há muito em disputa. Como nos ensinou Gilberto Gil, “O povo sabe o que quer / Mas o povo também quer o que não sabe”. O que não cabe na planilha dos rentistas é a felicidade da população.

*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro, vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.