A tragédia no Sul precisa virar a chave
Durante décadas, ouvimos o mesmo disco neoliberal: “é preciso reduzir despesas”. Para qualquer problema, a solução é “fiscal”. “Temos que cortar na carne” (mas nunca dizem de quem). Extinguir órgãos públicos, “enxugar a máquina”, praticar a “austeridade”: eis a fórmula para a boa gestão pública eficiente e moderna. Tudo muito genérico e “simples”. O Estado é ineficiente, não há saída que não seja reduzi-lo ao mínimo possível, sem medo, dúvidas, licenças ou permissões, pois o “Mercado” a tudo regula.
Este disco liberal tem um lado B, (ainda) mais obscuro, mas que passou a tocar cada vez mais alto nos últimos tempos. Reduz todas as questões a problemas morais, em que há sempre um lado certo e outro errado, como nos algoritmos das redes sociais. Certo é o “cada um por si”, porque o Estado só atrapalha ao cobrar impostos e “gastar” o dinheiro dos cidadãos e cidadãs de bem. Errado é ser “a favor dos direitos humanos”, “dar dinheiro” a quem não trabalha, “sustentar vagabundo”. Aos miseráveis, a miséria. “E daí, quer que eu faça o quê?”.
Essa conversa vem de longe e nem ao menos é “made in Brazil”. “O que é a sociedade? Não existe essa coisa. O que existe são homens e mulheres, indivíduos, e famílias”, não se cansava de repetir, nos anos 1980, Margaret Thatcher, a dama-de-ferro do capital financeiro, padroeira do Estado Mínimo. Uma mentira repetida tantas vezes que virou crença em boa parte do mundo, estimulou desigualdade, miséria, fome e guerras. No Brasil, a cantilena antipovo foi parcialmente interrompida nos governos de Lula e Dilma, mas voltou com estridência e ruído nos anos Temer e Bolsonaro. Uma marcha da barbárie que combinou no mesmo arranjo desregulação, negacionismo(s), discurso antipolítica e pânico moral, e (ainda) toca sem parar.
Mesmo a vitória de Lula em 2022 foi incapaz de abafar completamente esta sinfonia de desinformação. Afinal, ela é amplificada pelos algoritmos das redes sociais, desreguladas e calibradas para premiar com alcance e engajamento fake news, discursos de ódio, trolls e criminosos digitais. Só que essa marcha fúnebre desandou com o início das chuvas de maio no Rio Grande do Sul, quando o quarto maior estado do Brasil colapsou quase completamente. As enchentes levaram as vidas de quase 200 pessoas e deixaram desabrigada 42% da população gaúcha. Uma tragédia nunca vista, mas há muito tempo prevista pela comunidade científica, que atingiu em cheio o discurso de “eficiência neoliberal”, sempre ignorante dos alertas dos especialistas e alérgica a “gastos” com manutenção e prevenção de desastres.
A tese do individualismo extremista e desumano que dá vida ao bolsonarismo também foi abalada. Com o governo Bolsonaro rezando pela cartilha do “Estado Mínimo”, o governador trilhando a rota dos ajustes e privatizações e sobrepondo o fiscal aos investimentos de prevenção e proteção à vida, e um prefeito de Porto Alegre mais preocupado com “ideologia de gênero” do que em prevenir alagamentos, o Brasil constatou, estarrecido, que o Rio Grande do Sul estava prestes a ficar à deriva.
Foi o governo federal, liderado com firmeza pelo presidente Lula, e buscando unir esforços com os governos locais e a sociedade, que reagiu de imediato às múltiplas urgências que vieram com as enchentes. Foi o aparato do Estado que levou milhares de homens aos locais afetados, resgatou pessoas e animais e garantiu recursos a todos os municípios e cidadãos afetados. E é o Estado que financiará e coordenará os esforços de reconstrução destas cidades.
O contraste é gritante. Impossível não comparar o atual governo, que sabe o que fazer e tem iniciativa, com o anterior, que ignorou tragédias climáticas, debochou das vítimas da pandemia de Covid e até golpe tentou dar em nossa democracia. A onda de solidariedade que se formou em todo o Brasil, e até no exterior, para enviar mantimentos, roupas, água, remédios e recursos aos mais de 600 mil desabrigados, foi vista com alarme pelo bolsonarismo.
Diante da tragédia, o discurso da “polarização do País” foi literalmente por água abaixo – o que não impediu os alimentadores do ódio e da anticiência a seguir mentindo e colocando em risco as vidas gaúchas e as ações de apoio àquela terra e sua gente. Apesar disso, o que tivemos foram brasileiras e brasileiros de todos os espectros políticos unidos para levar algum conforto àquela população que necessitava – e ainda necessita – de todos nós.
Não é por acaso que um enorme contingente de fake news surgiu pouco depois da catástrofe. Tentaram inviabilizar as doações e mentiram sobre as ações do governo federal. Puxaram mais uma vez os temas do “nós contra eles”, do “Estado inimigo do povo”, e atrapalharam os trabalhos de resgate e de voluntariado. Quem lucra com a divisão do País não quer mesmo saber de união e reconstrução. O método foi o mesmo usado durante a pandemia e as eleições. É preciso descobrir quem financiou esta nova leva massiva de mentiras. O gabinete do ódio está “on” – e os suspeitos de sempre já estão sendo investigados por disseminarem desinformação.
Mas, por mais que tentem desviar o assunto, não tem mais jeito: o desastre climático no Rio Grande do Sul virou uma chave na cabeça das pessoas. Pesquisa do instituto Quaest indicou que nove em cada dez brasileiros enxergam alguma relação entre as enchentes no Sul e a crise do clima. Para a maioria das pessoas (64%), essa relação é direta. Neste ano, teremos eleições municipais em todo o Brasil e a preocupação ambiental estará mais do que nunca na pauta. O rentismo neoliberal e o bolsonarismo fascista vão tentar se disfarçar de “moderados” e “antipolíticos” para seguir em seu perigoso projeto de solapar nossa democracia e enfraquecer o Estado em troca de lucros pessoais.
É preciso combater suas fake news e negacionismo com fatos e verdades. Apresentar novas possibilidades de existência, com respeito à diversidade e à vida coletiva. As cenas estarrecedoras de cidades inteiras arrasadas, e das pessoas que perderam entes queridos e absolutamente tudo adquirido ao longo de uma vida – muitos pela segunda ou terceira vez em pouco tempo – não vão sair tão cedo da cabeça de ninguém.
Também vimos que a emergência climática é mais cruel com os mais vulneráveis. As camadas mais populares não conseguiram resgatar nada e perderam seus tetos no Sul; muitos não têm para onde voltar. Nem casa, nem cidade. Lojas, serviços, indústrias, safras agrícolas, escolas, unidades de saúde, espaços de arte e cultura estão todos submersos, muitos completamente destruídos. Não há mais como desassociar a tragédia no Sul das nossas próprias existências. E de projetar em nossas próprias cidades, casas e familiares toda a dor e desespero de nossas irmãs e irmãos gaúchos.
Isso precisa mudar já. É preciso reverter retrocessos legislativos que pioram a crise ambiental e climática e paralisar as “boiadas” que tentam passar no Congresso Nacional (e também nos parlamentos locais) na hora da tragédia. Temos muitas tarefas: recuperar a proteção da sociedade e sua relação saudável com o planeta; pensar o papel maior do Estado na sustentação e controle de áreas estratégicas do País e dos estados da federação; garantir que a prevenção de desastres tenha recursos e ações para assegurar nossas vidas; cumprir a legislação urbana existente; fazer funcionar o que já está construído e parou por falta de investimento, manutenção e cuidado.
Pensar, de uma vez por todas, em projetos nacionais e regionais de desenvolvimento sustentável. Reitero minha solidariedade aos gaúchos, às gaúchas e às suas famílias, sabendo que é hora de unir e socorrer, e para isso, além da grande mobilização do povo brasileiro, bancadas como a do PCdoB realocaram emendas parlamentares para o Rio Grande do Sul, e apresentaram propostas legislativas emergenciais. Mas também é hora de reconstruir. E nessas horas as concepções e os projetos se colocam, se confrontam e precisamos fazer escolhas. Espero que já esteja claro para a sociedade que negar a ciência, mentir para disputar consciências e reduzir o papel e a importância do poder público não são escolhas que defendam a vida e todos os direitos fundamentais do nosso povo, esteja ele onde estiver, para conviver, estudar, criar e produzir.
*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB-RJ, vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.