A redação do Enem e a ignorância da sociedade patriarcal
Poucas vezes um tema de redação do ENEM incomodou tanto os homens e os conservadores como o proposto este ano: “Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil”. Divulgada há dois domingos, a proposta de dissertação foi atacada, das mais diversas formas, por homens de todos os matizes. Houve quem se queixasse da formulação do tema, houve quem esperneasse por mera razão ideológica, teve até editorial de jornal falando em “doutrinação” e acadêmico em “desonestidade”. Acima de tudo, a formulação do ENEM escancarou uma conveniente ignorância ou miopia da sociedade patriarcal neste assunto. E revelou a urgência de tratarmos dele.
É urgente falarmos sobre o Trabalho de Cuidado porque, infelizmente, a confirmação expressa nas reações sobre seu significado e implicações na sociedade ultrapassa os suspeitos misóginos de sempre, como os bolsonaristas que tanto chiaram ao descobrir o tema da redação. No campo progressista, também não foram poucos os homens que demonstraram pouquíssima intimidade com o assunto. Foi imensamente revelador ver como muitos simplesmente não entenderam o tema proposto pelo Inep, e tentaram reduzi-lo a “trabalho doméstico” – uma tarefa “naturalmente feminina”. Alguém sugeriu, numa rede social, que o tema “correto” da redação deveria ser “como valorizar o trabalho doméstico feminino”. Este aí não ia se dar muito bem na prova.
A realidade é um tanto mais complexa – para as mulheres, evidentemente, a quem cabe quase toda a sustentação da Economia do Cuidado. É consequência da conhecida e injusta divisão sexual do trabalho e do modelo escravista bastante enraizado entre nós. A Economia do Cuidado é um dos principais motores de sustentação do país, embora quase nunca reconhecida. Em média, as mulheres gastam mais de 61 horas por semana em trabalhos não remunerados no Brasil. São quase nove horas diárias de serviços não pagos. E eles são muitos: amamentar, cozinhar, fazer companhia a idosos, acompanhar e cuidar de enfermos, buscar os filhos na escola, estudar com as crianças, acompanhar os filhos em todas as suas demandas, organizar as contas da casa, fazer compras, cozinhar, fazer faxina…
Os trabalhos de Cuidado Reprodutivo, de Saúde ou Doméstico normalmente são invisibilizados. Se a Economia do Cuidado fosse remunerada, equivaleria a US$ 10,8 trilhões no mundo todo, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, atrás apenas das economias de China, EUA, União Europeia e Índia. No Brasil, este trabalho não pago das mulheres corresponderia a 11% do PIB brasileiro segundo o IBGE, mais do que o dobro do altamente subsidiado agronegócio. No fim das contas, todo este esforço invisível está na base de sustentação do país. Mas falta reconhecimento, remuneração e segurança previdenciária.
O trabalho doméstico, os cuidados maternos e de saúde tornam a jornada das mulheres muito maior do que a dos homens. E as coisas pioraram ainda mais após a pandemia, revela o estudo “Esgotadas”, do coletivo Think Olga, que mapeou o estado atual das sobrecarregadas mulheres brasileiras. A pesquisa mostrou que dívidas, instabilidade financeira, remuneração baixa e a sobrecarga de trabalho têm impactado severamente a saúde física e, sobretudo, mental das mulheres: 45% das entrevistadas sofrem de depressão, ansiedade ou algum outro transtorno mental. A desigualdade está diretamente associada a isso: o IBGE informa que 62,8% das pessoas em domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos vivem abaixo da linha de pobreza. Um fenômeno que vem sendo detectado em todo o mundo, e tem sido chamado há décadas de “feminização da pobreza”.
O tempo do cuidado precisa ser compensado. Na Câmara dos Deputados, estamos na luta para aprovar o PL 2691/2021 (meu e de mais três deputados do PCdoB, Alice Portugal e Professora Marcivânia e Renildo Calheiros), que propomos o benefício da aposentadoria no valor de um salário mínimo para as mulheres de 62 anos ou mais que comprovem ter filhos ou equiparados, mediante o parcelamento das contribuições que faltam para atingir a carência de 15 anos. O parcelamento se daria em até 60 meses, com a possibilidade de desconto no próprio benefício.
Desta forma, o parlamento espera reparar, ao menos em parte, séculos de desigualdade entre homens e mulheres no Trabalho de Cuidado. Outros países, como Chile, Argentina e Uruguai, já adotam políticas semelhantes. As mulheres precisam de tempo e espaço para desenvolver suas carreiras, talentos ou simplesmente ter direito ao descanso e ao lazer, como os homens sempre tiveram. E precisamos superar a cultura do machismo e da misoginia. Está na hora de os homens se engajarem de verdade no Trabalho de Cuidado. Podem começar reconhecendo sua existência. Já valeria uma nota mais alta no ENEM.
*Deputada federal pelo Rio e líder do PCdoB na Câmara. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.