Cem dias sem governo
Bolsonaro chega aos cem dias de mandato sem nada a comemorar: nenhuma realização concreta, más notícias no cenário econômico, falta de organização no governo, sem base de sustentação no Congresso e com a popularidade em franca erosão.
O que se viu nesse período inicial, longe de serem meras dificuldades de adaptação e conhecimento da máquina, foi um governo que não se preparou para assumir suas funções nem traçou um plano de prioridades estratégicas a perseguir nas diversas áreas.
Como inexistiu debate programático nas eleições, não há um projeto claro que dê sentido e unifique os esforços da administração. Até mesmo a Reforma da Previdência, teoricamente a pedra angular do governo na economia, aparece como um fim em si mesma – “eu quero 1 trilhão”, nas palavras de Paulo Guedes -, sem descortinar um horizonte de retomada do crescimento. A bandeira do ajuste fiscal a todo custo, distribuindo o peso nas costas do povo para ampliar os privilégios de uma casta de multimilionários, não convence, desmobiliza e enfrenta resistências até mesmo de aliados do presidente.
A impressão que se cristaliza na opinião pública é a de que o país está à deriva, sujeito a improvisos e amadorismos que poderiam servir, vá lá, para um deputado medíocre como Bolsonaro, mas que são intoleráveis na condução de um país com as dimensões do Brasil. Não à toa, pesquisas de variados institutos apontam o rápido e contínuo derretimento da autoridade presidencial, o aumento da desconfiança dos agentes econômicos e o desânimo da população com as perspectivas do país.
A sondagem do Datafolha deste final de semana seria para deixar a turma do Planalto de cabelo em pé, se tivessem juízo, claro. Apenas 32% consideram a gestão ótima/boa, ao passo que 30% acham-na ruim/péssima, a pior marca da história para um presidente em primeiro mandato. Uma comparação diz tudo: Fernando Collor, no mesmo período e já com o confisco da poupança em andamento, tinha 36% de aceitação e 19% de rejeição.
Vale aqui lembrar que Bolsonaro tem queimado capital político sobretudo com temas irrelevantes para o país. Para manter mobilizado um núcleo radical de seu eleitorado, o presidente insiste em pautas que o ridicularizam perante a maior parte da população, como na ordem para comemoração do golpe militar, na vexatória tentativa de vinculação do nazismo à esquerda ou no vídeo pornô-escatológico sobre o Carnaval.
Que ninguém se engane, não há inocência. Bolsonaro resolveu priorizar a tentativa de reescrever a história com base na mentira, a chamada “guerra cultural”, bem ao gosto de seu guru, Olavo de Carvalho. Mesmo assim, poderia ter procurado mentes menos rudimentares para levar a cabo seu intuito. As áreas mais sofríveis da atual gestão, fontes de permanente desgaste, são justamente as que foram entregues aos delírios olavistas e aos fundamentalistas religiosos. Há ainda a primária mistura entre família e Estado e a constante disputa entre as facções do governo, problemas que o capitão está longe de conseguir arbitrar.
No que diz respeito à economia, os dados disponíveis são decepcionantes. As primeiras parciais do ano apontaram aumento do desemprego, que atingiu 12,4%, segundo o IBGE. A força de trabalho subutilizada chega a assombrosos 27,9 milhões de pessoas. Diante da má notícia, Bolsonaro preferiu atirar no mensageiro e tratou de desqualificar o trabalho do instituto.
Mas praguejar contra os números não resolve o fato de que a indústria de transformação atravessa seu pior momento em mais de 70 anos, representando apenas 11,3% do PIB, em estudo divulgado pela CNI. E os sinais são de agravamento do quadro, uma vez que a atividade industrial recuou 0,2% no primeiro bimestre de 2019, na comparação com o mesmo período do ano anterior.
Justamente nesse momento de dificuldades, inclusive com grandes empresas anunciando o fechamento de plantas industriais aqui, o governo afia suas garras contra os trabalhadores e o movimento sindical. Além da draconiana Reforma da Previdência, o presidente fala abertamente em desregulamentar ainda mais as relações de trabalho, criar a carteira verde e amarela, que termina de sepultar as garantias da CLT, e procura estrangular as entidades sindicais impondo empecilhos antidemocráticos ao seu financiamento.
E o que está bem ruim sempre pode piorar. Graças à política externa lunática de Bolsonaro, o Brasil está ameaçado de receber retaliações comerciais de países árabes inconformados com a provocação feita à Palestina para bajular Israel. Também não estão no momento mais promissor as nossas relações com a China, maior destinatário de nossas exportações. Tudo somado, Bolsonaro, que tanto criticou a suposta ideologização de gestões anteriores, pode prejudicar nosso agronegócio por opções ideológicas, trazendo graves consequências para o setor mais pujante de nossa economia nos últimos anos.
O desapreço do presidente pela democracia e pelas instituições completa o quadro desolador desses cem primeiros dias. Embora tenha passado quase 30 anos como deputado e tenha patrocinado a carreira política dos filhos, Bolsonaro insiste numa retórica vazia e hipócrita contra o que chama de “velha política”.
Flerta abertamente com o autoritarismo ao atuar em confrontação institucional permanente, fomentando a desarmonia entre os poderes. Dessa forma, o governo mira a desmoralização da República, insta suas milícias virtuais contra o parlamento e o Supremo para tentar impor suas medidas via chantagem. Não vai dar certo. Em pouco tempo, já sofreu derrotas humilhantes, expôs a fragilidade de sua articulação e a completa desordem daquilo que deveria ser sua base congressual. Arrogante, projeta um placar na Reforma da Previdência que é simplesmente uma miragem, uma quimera.
Mas os problemas concretos do país não afligem o presidente. Se os fatos não correspondem às suas exóticas opiniões, danem-se os fatos. Encapsulado em sua bolha virtual, Bolsonaro parece alheio à realidade, enquanto o Brasil segue há cem dias sem governo.
Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB-SP.