Contra o PL do Estupro: nem presas, nem mortas!
É bonito de ver. Nas últimas semanas, mulheres adultas e jovens, de todas as classes, gritaram alto e saíram às ruas contra o PL 1904/24, conhecido em todo o Brasil como o PL do Estupro. Inconstitucional, imoral e misógino, o projeto da extrema-direita bolsonarista que equipara aborto a homicídio é um retrocesso civilizatório, uma distopia em forma de lei tão grande que parece saída do Conto da Aia. Mas a sociedade brasileira reage à maldade absoluta que seria viver num país em que vítimas de estupro podem ir para a cadeia por mais tempo que estupradores. E rejeitou a ideia com veemência.
O aborto no Brasil ainda é ilegal, segundo o código penal de 1940. Os artigos 124, 125, 126 e 127 contêm a vedação da prática do aborto e a pena máxima é de quatro anos, podendo chegar a dez anos se provocado sem o conhecimento da gestante. Já o artigo 128 contém a autorização da interrupção da gestação em dois casos (aborto necessário): quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e em caso de gravidez resultante de estupro. Uma terceira hipótese foi garantida pelo STF nos casos de gravidez de feto anencéfalo.
O PL 1904 passa por cima dessas garantias estabelecidas em 1940 para, 84 anos depois, criminalizar as mulheres e os profissionais de saúde, mesmo que o aborto seja legal, se o procedimento for realizado após a 22ª semana de gestação. A pena pode chegar a 20 anos! Além de violada, a mulher será presa e obrigada a carregar em seu ventre uma gravidez não desejada, resultante de violência brutal contra a dignidade da pessoa humana, com graves impactos psicológicos e físicos. Sem falar que a maioria dos estupros tem como vítima as meninas e adolescentes e o pai ou parente próximo como estuprador. Um verdadeiro horror!
Assim que a urgência do projeto foi aprovada na Câmara dos Deputados, manifestações surgiram em todo o país. E o grito das meninas e das mulheres ecoou forte. O plano dos neopentecostais fundamentalistas e dos bolsonaristas, que patrocinam boa parte dos retrocessos no Congresso Nacional, foi repudiado dentro dos templos: 57% dos evangélicos e 68% dos católicos, diz o Datafolha, posicionaram-se contra a proposta de equiparar o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio simples.
O PL saiu pela culatra e não deve ser votado tão cedo, mas isso não basta: a sociedade exige o imediato arquivamento desta ideia indigna e criminosa. As mulheres e o campo progressista continuam nas ruas de todo o país para defender um direito estabelecido no século passado. Já os autores e apoiadores do PL 1904 ficaram sem ação diante da reação da sociedade. Houve até quem retirasse assinatura do projeto. Talvez não contassem com um posicionamento tão firme e altivo. Afinal, o aborto é uma das pautas que a oposição bolsonarista quer dar foco no Congresso, numa tentativa de consolidar a opinião pública conservadora, sempre à br de muita desinformação e pânico moral.
Mas somos, antes de tudo, um povo solidário. Prova disso é que a maioria absoluta das brasileiras e dos brasileiros reprovou este projeto de lei.
O principal autor desta proposta foi à TV defender que menores de 18 anos devem submeter-se a “medidas sócio-educativas” após abortarem, como se fossem delinquentes. O mais novo relatório Atlas da Violência (Ipea/ Fórum Brasileiro de Segurança Pública) mostra que, em 2022, 30,4% das meninas de 0 a 9 anos e 49,6% entre as de 10 a 14 anos sofreram violência sexual. Muitas, dentro da própria casa. Sugerir que, após tantas violências (e o trauma do aborto em si), estas meninas devam continuar a ser punidas é de uma desumanidade gritante. E, para tentar reduzir a indignação na sociedade, propuseram aumentar a pena do estuprador, como se isso retirasse a brutal punição e criminalização da vítima.
Claramente, o PL 1904 foi uma manobra política da oposição bolsonarista e fundamentalista religiosa para pressionar o governo Lula e impedir que o Legislativo discuta e aprove os projetos verdadeiramente de interesse do país. Querem pautar o Congresso e a sociedade com temas que não respondem a qualquer demanda do nosso povo: anistia para os golpistas do 8 de janeiro, equiparar usuários e traficantes de drogas, aborto são exemplos dessas manobras. Nossa gente tem, neste momento do país, outras preocupações e demandas para viver melhor e com qualidade. Declarar que o interesse em aprovar o 1904 é apenas para ver se Lula iria “sancionar ou vetar” é muito desrespeitoso. Como se a discussão sobre o aborto estivesse decidida e fosse imutável. Esquecem – ou ignoram – que a política, como a vida, é movimento.
E o movimento, atualmente, vem das ruas, dos gritos de meninas e mulheres em defesa de um direito constitucional, e de uma sociedade farta de ver a pauta do Congresso sequestrada por esta e outras iniciativas que retiram direitos e criminalizam as pessoas. Diante das mesmas leis, morrem as mulheres e as meninas pobres e negras que não acessam serviços qualificados. Há um claro recorte de classe e raça nas consequências da realidade que temos hoje. E são as mesmas que estarão entre as punidas por este projeto. Nós, mulheres, não somos moeda de troca para o jogo político de extremistas e neofundamentalistas.
Esta não é uma pauta de costumes. Esta é uma pauta de saúde pública e da democracia.
PL 1904 arquivado já!
Pela vida das mulheres!
Nem presas, nem mortas!
*Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro e vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.