PL da Gravidez Infantil: aberração política, moral e inconstitucional
O Brasil foi sacudido no final da semana passada com a aprovação do regime de urgência para a tramitação do Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto de feto com idade gestacional igual ou superior a 22 semanas ao crime de homicídio para efeitos penais, mesmo em casos de estupro, quando há previsão legal para a interrupção da gravidez.
A proposta, feita pela bancada bolsonarista, é misógina, atenta contra os direitos mais elementares de mulheres e crianças estupradas, chegando mesmo à desfaçatez de punir com pena maior a vítima da violência sexual do que seu algoz. Por consequência, o PL também acaba por criminalizar os profissionais da saúde, que, no exercício da profissão, realizem os procedimentos nas mulheres e crianças violentadas. É um escárnio!
Felizmente, a resistência da sociedade contra esse disparate legislativo foi de tal monta, com manifestações simultâneas e quase imediatas em diversas capitais do país, que a extrema direita ensaia um recuo de momento e parlamentares de centro e centro-direita já pressionam para que não seja apreciado em Plenário.
Ainda assim, o extremismo segue utilizando a tática do choque para testar a aderência a teses obscurantistas, numa escalada de naturalização da barbárie. A partir disso, mantém a ofensiva no debate público, coloca sua agenda fundamentalista no centro e desvirtua o papel do Legislativo, tornando-o palco da radicalização, da antipolítica e do enfrentamento às instituições. É uma armadilha que precisamos desmontar!
No mérito, o projeto em questão não é apenas uma abjeção moral e aberração política, é também inconstitucional e afrontoso a convenções internacionais de direitos humanos das quais o Brasil é signatário.
A Constituição Federal, quando fala dos direitos e garantias fundamentais, se refere aos “brasileiros e aos estrangeiros residentes no país”, sendo que a definição de “brasileiros” do capítulo sobre a Nacionalidade, no Art. 12, sempre alude expressamente aos “nascidos”.
O voto da ministra Rosa Weber na ADPF 442, que trata sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana, enumera esse e outros argumentos sobre o momento da aquisição dos direitos fundamentais. Por exemplo, o Código Civil, apesar de trazer a proteção ao nascituro como relevante juridicamente, só admite aos nascidos vivos os direitos de personalidade e, embora nascituros possam receber bens em doação, só haverá efeitos jurídicos quando do nascimento com vida. É contra o denso e laborioso voto da ex-ministra do STF que se batem os autores do projeto, retirando alguns trechos do contexto argumentativo para contra-atacar.
Mas esse é apenas um dos debates que revelam a inconstitucionalidade de tal proposta legislativa. Há outros. Se a vida é, sem dúvida, um direito fundamental, há que se cotejá-lo com outros direitos, como o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, sobre o qual se sustenta todo o ordenamento jurídico. A própria inviolabilidade da vida está contida, por assim dizer, no princípio da dignidade da pessoa humana, que é mais amplo, pois não basta a vida, ela deve ser digna.
Sob esse prisma, da dignidade da pessoa humana, como exigir que uma mulher ou criança, vítima do abominável crime de estupro, seja obrigada a levar até o fim uma gestação fruto de repugnante violência? Como exigir que uma criança ou adolescente, ainda em processo de formação social, educacional e mesmo de seu corpo, seja obrigada a levar adiante uma gravidez que pode inclusive levá-la à morte? Como ficam os direitos à saúde física e mental de mulheres e crianças duplamente violentadas, pelo estuprador e pela infâmia da imposição legal de conceber?
A proporcionalidade e a razoabilidade, princípios constitucionais não escritos, mas implícitos à Carta da República, também são aviltados nesse projeto de lei. Esses princípios visam justamente limitar o poder do Estado em relação aos indivíduos, sem o que não se poderia falar legitimamente em Estado Democrático de Direito.
Não há proporcionalidade ou razoabilidade que sustentem a criminalização da interrupção da gravidez em caso de estupro, circunstância excepcional em que há previsão legal para tanto. Ademais, a punição pretendida à mulher estuprada que venha a praticar o aborto além das 22 semanas é equivalente à do homicídio – de 6 a 20 anos -, maior que a prevista para o próprio estuprador, que é de 6 a 10 anos. Não faz nenhum sentido, a não ser que a proposta queira uma vingança contra a vítima.
Nesse caso, pode-se ainda invocar o princípio da vedação do retrocesso, que deriva do próprio postulado da dignidade da pessoa humana. Parte-se do pressuposto de que os direitos fundamentais são conquistas civilizatórias e que um Estado constitucional visa a paulatina ampliação de direitos fundamentais e não a supressão, tanto que aquilo que é considerado cláusula pétrea na Constituição pode ser ampliado, mas não restringido. Princípio de eficácia negativa, a vedação do retrocesso visa exatamente evitar que a produção de uma norma tenha efeito de retirar ou restringir um direito fundamental já conquistado.
Não bastassem tantos atropelos constitucionais, vale também frisar que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, expedida na cidade de Belém do Pará em 1994, ratificada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Decreto Presidencial Nº 1.973, de 1º de agosto de 1996.
Tal Convenção protege a mulher contra a violência física, sexual e psicológica, incluídos o estupro e o abuso sexual, e resguarda sua integridade física, sexual e moral, dando-lhe igual proteção perante a lei e, atenção, DA LEI. Portanto, no Brasil, uma norma esdrúxula a ponto de punir a mulher vítima de estupro, que venha a praticar um aborto de feto com 22 semanas ou mais, com pena superior à do agressor, é inequivocamente inconvencional.
A verdade é que o PL 1904/2024 – o PL da Gravidez Infantil – é uma barbárie que envergonha o Brasil apenas de estar em debate, pois nem isso deveria. É uma aberração política, moral e inconstitucional.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB de São Paulo. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.