PEC das Drogas: populismo penal que criminaliza a pobreza
Há meses o debate público gira entorno de uma tensão permanente entre os poderes. Ora o Executivo vira alvo de ira de parcelas do Legislativo por supostamente desrespeitar acordos ou contingenciar recursos orçamentários destinados por parlamentares, ora a fricção se dá entre o Judiciário e o Parlamento, sendo o primeiro frequentemente acusado de exorbitar suas competências.
A Constituição fala em poderes harmônicos e independentes entre si, sendo que o sistema de freios e contrapesos existe justamente para evitar uma indesejável hipertrofia que sobreponha um poder aos demais. Ou seja, a própria lei maior já vislumbra a tensão inerente às funções de administrar, legislar e julgar, porquanto algum ruído sempre existirá no sistema democrático.
A bola da vez é um pretenso avanço do Supremo Tribunal Federal em prerrogativas legislativas, pois, seguindo essa opinião, estaria legislando na prática quando trata de temas sensíveis, como a descriminalização das drogas.
Sobre o suposto ativismo judicial, há que se lembrar que o STF não age de ofício, mas sempre por provocação. Portanto, se de um lado da moeda está a queixa de politização da Justiça, do outro está a judicialização da política, fenômeno pelo qual as decisões políticas tomadas no Congresso acabam questionadas no Supremo. Quem o faz? Muitas vezes os próprios parlamentares e seus partidos.
Então, há que se levar a bola ao chão e manter a frieza, sob pena de julgar de acordo com o nome do processo ou legislar “com o fígado”, o que é péssimo para o Brasil em ambos os casos. Como ensinam os mais velhos, dois erros não fazem um acerto.
Veja-se agora o caso do debate na Suprema Corte sobre drogas para consumo pessoal. O Recurso Extraordinário 635659 (Tema 506) foi distribuído em 2011, quando foi reconhecida repercussão geral, e teve voto do relator, ministro Gilmar Mendes, em 2015, longe, portanto, de ser uma carta tirada da manga para afrontar o Legislativo.
Mas o pior é o que verdadeiro debate, qual seja, a discussão sobre o Art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), foi jogado pelo ralo e virou, na mixórdia das redes sociais, a suposta tentativa de empurrar goela abaixo da sociedade a descriminalização das drogas. Não é!
A questão é que, hoje, portar pequena quantidade de droga para consumo pessoal não dá cadeia. Esse foi um avanço aprovado após amplo debate do Parlamento, em 2006, ecoando a noção de que usuário não é criminoso e de que cadeia não é solução para seu caso. Apesar do passo adiante, a lei não trouxe critérios objetivos para diferenciar usuário de traficante, passando para o Judiciário tal definição, caso a caso.
Sabe-se que, particularmente em matéria penal, quanto mais aberto e interpretativo for o dispositivo, maior o risco de abrir flanco ao arbítrio. Na vida real, branco rico virou usuário e preto pobre virou traficante. Simples de entender nos padrões de um país de mais de 300 anos de escravidão.
O julgamento, portanto, visava fixar uma quantidade de droga de referência para diferenciar o uso pessoal do tráfico. Excedida a quantidade, a pessoa poderia ser enquadrada como traficante. O foco é garantir provas mais seguras para evitar injustiças, algo que a mim, que vivo no Brasil real e não no imaginário, parece bem razoável.
Pois bem, os debates foram misturados e os ânimos, acirrados. Ganhou a opinião pública a ideia de que há uma invasão de competências, furor legiferante do Judiciário, que estaria empoderado demais e querendo se sobrepor a outros poderes. É fácil somar insatisfações, ainda mais nos dias de hoje.
A resposta é a PEC 45/2023, que eleva à Constituição Federal a criminalização do porte e posse de qualquer quantidade de droga. O Senado aprovou a medida em tramitação relâmpago, sem prazo suficiente para debate e nenhum estudo científico que a ampare.
Se a Câmara repetir esse caminho, não me admiro se daí surgir mais um contencioso entre poderes, afinal, não é porque aprovada no Congresso que a norma é necessariamente constitucional, mesmo sendo PEC. Vejam, existem cláusulas pétreas, entre elas o Art. 5º, nas quais só é possível ampliar direitos e jamais restringir ou suprimir, como pode ser neste caso. Provocado, se for, haverá de fazer o quê o STF, senão dizer a palavra final sobre a interpretação constitucional?
Afora isso, trata-se de má política pública mesmo. Os números são eloquentes quanto ao fracasso da política de “guerra às drogas”. Somos o terceiro país em população carcerária do mundo, mais de 800 mil somando os no sistema prisional e aqueles sob custódia, dos quais 68,2% são pessoas negras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Desse montante, grande parte responde por delitos de menor potencial ofensivo, como porte de pequenas quantias de drogas, furtos etc.
Quais os avanços conquistamos como sociedade com o encarceramento em massa da juventude negra? Ou alguém tem dúvida de que portas e janelas das masmorras se abrirão ainda mais para os “suspeitos de sempre” com essa medida?
As cracolândias vão desaparecer de nossas grandes cidades? Temo que não. O narcotráfico sairá enfraquecido? Creio que, muito ao contrário, deve estar exultante com a possibilidade de mais e mais jovens pobres para aliciar e faccionar nas prisões. Aliás, quem mais gosta da criminalização das drogas é mesmo o tráfico ilícito, que lucra bilhões com isso.
Moldada como uma luva para a lacração dos reacionários nas redes, a PEC das Drogas é puro suco do populismo penal que criminaliza a pobreza.
*Deputado federal pelo PCdoB de São Paulo. Artigo originalmente publicado pela Carta Capital.