Quem tem medo da regulação das redes?
O que acontece quando nos recusamos a enxergar a realidade, por mais dura, assustadora ou distópica que ela possa parecer? Ela se torna ainda mais dura, assustadora e distópica. E a realidade é que o mundo vive hoje sob uma virulenta epidemia de desinformação e crimes digitais, que reduzem todos os contextos – históricos, políticos, sociais, econômicos – a memes e tentam moldar a opinião pública através da manipulação e distorção dos fatos.
Fechar os olhos a essa epidemia é entregar de bandeja o mundo em que vivemos a um grupo internacional de oportunistas e politicamente articulados que atua (em rede) para hackear a democracia. Não é por acaso que o tema da regulamentação das redes está em discussão, neste momento, em quase todos os países. O que está em jogo é uma batalha civilizatória.
Especialistas que observam e estudam há anos as redes sociais apontam que os conteúdos com maior alcance nas plataformas digitais são os discursos de ódio, que se espalham como vírus (viralizam) e adoecem as sociedades. Isso acontece porque, ao notarem o melhor desempenho deste tipo de conteúdo, os controladores das redes – as chamadas “big techs” – passaram a direcionar seus algoritmos para estimular a treta, o bullying, os cancelamentos e todo tipo de animosidade online. Quanto mais ultrapassa limites de discordância e descamba para o racismo, a misoginia, a LGBTfobia, o ataque às instituições, mais longe vai o conteúdo de ódio.
Há anos, em todo o mundo, esse conteúdo “polarizador” tem sido operado com sucesso por grupos de extrema-direita para distorcer fatos, isolar e alienar pessoas em bolhas, impor ideologias excludentes e realidades inexistentes. As pessoas têm sido autorizadas e estimuladas a agredir, humilhar, discriminar, cancelar adversário das ideias e votar contra si mesmo. Alcance para os extremistas e lucro para as plataformas, às custas de uma lenta e alarmante corrosão social. Esse consórcio, que une bilionários do Vale do Silício, financistas inescrupulosos, poderosos extrativistas e fascistas convictos, está se organizando há anos e opera (até aqui) impunemente, afetando a cultura e a saúde mental de populações inteiras.
Suas fake news disseminadas com muito dinheiro levaram ao poder figuras como Trump, Orban, Bolsonaro, Netanyahu, Milei. Em muitos outros lugares, a extrema direita morde os calcanhares do campo democrático, e a resposta, até aqui, tem sido tímida. Um dos países que mais duramente têm respondido às investidas do neofascismo global é o Brasil, impedindo sua continuidade no comando do País pelo voto popular e pelas decisões do Judiciário. Precisamos agora de uma resposta pronta e abrangente do Parlamento brasileiro. Não é por outro motivo que o inescrupuloso bilionário Elon Musk vem direcionando seus canhões de difamação contra nossas instituições. Com a proximidade da prisão de Jair Bolsonaro e outros golpistas, os seus aliados atacam. E um dos remédios mais eficazes aplicados pela Justiça tem sido justamente o combate às fake news e aos discursos de ódio nas redes, com a suspensão de contas propagadoras deste tipo de mensagem. Este é o pior pesadelo dos extremistas.
Há pouco mais de uma semana, o dono do “X” (ex-Twitter), usou a própria rede (e manipulou seu alcance) para uma série de ataques mentirosos, provocações e insultos ao presidente Lula e, em especial, ao ministro do STF Alexandre de Moraes, a quem chamou de “ditador brutal”. Segundo ele, Moraes deveria sofrer um impeachment, pois censuraria e perseguiria políticos bolsonaristas e seus apoiadores, o que faria do Brasil uma “ditadura”.
Convenientemente, é o mesmo discurso que o criminoso Jair Bolsonaro e sua turma de golpistas repete há meses para vender a imagem de “perseguidos políticos”, quando são, na verdade, traidores da pátria: no mês passado, parlamentares aliados do golpismo foram aos EUA pedir sanções econômicas contra o Brasil. E, pasmem!, até em “direitos humanos” falaram. Elon Musk sabe o que está fazendo, mas sua “sabedoria” serve apenas para minar a nossa democracia e a seus interesses econômicos e políticos. O Brasil tem grandes reservas de lítio, que interessa à indústria automobilística de Musk, além de satélites da Starlink, que constituem algo bastante preocupante. Ter um governo aliado facilita seus negócios.
Os repetidos ataques de Musk também serviram como “apito de cachorro” para manter mobilizados os extremistas contra as instituições brasileiras. E não é coincidência que, no embalo das mentiras do bilionário, Jair Bolsonaro tente criar mais atos de apoio. Em visita à sede da Tesla, nos EUA, o presidente argentino Milei prometeu diretamente a Musk “ajuda no que precisar” (!) em sua cruzada contra o STF.
A extrema-direita internacional atua em conjunto em todo o mundo, inclusive com os mesmos argumentos. Em artigo recente publicado na Folha de S.Paulo, o jornalista Ruy Castro resumiu a fórmula: “A extrema-direita tem uma receita universal. Populismo, nacionalismo, discurso moral e religioso. Xenofobia, repúdio a imigrantes e racismo. Desprezo pelos partidos e pregação da antipolítica. Domesticação ou fechamento do Judiciário. População armada. Antiliberalismo. Negacionismo. Rejeição às teses identitárias e rancor contra artistas e intelectuais. E, com o apoio de seus zumbis nas redes sociais, disseminação de fake news, discurso de ódio com ameaças físicas e inversão de conceitos – falam de ‘liberdade’, ‘democracia’ e ‘eleições limpas’ e, quando no poder, esses valores são os primeiros a serem cancelados”. O nome do artigo é A ameaça -ainda- sem nome.
O dever do jornalista é alertar. O nosso, alertar e legislar para defender o bem comum e o interesse público. Ano passado, a Câmara dos Deputados estava prestes a aprovar o Projeto de Lei 2630/2020, relatado pelo camarada Orlando Silva (PCdoB-SP) e construído a muitas mãos com a sociedade civil brasileira, com partidos, governo e empresas para regulamentação das redes sociais no Brasil e punir os crimes na internet. Mas uma onda de fake news sobre o PL – patrocinada pelas big techs e encampada pelo campo bolsonarista – argumentou (falsamente) sobre “liberdade de expressão” e “censura”, quando o que sempre objetivamos é conter crimes contra a democracia, a saúde pública, o racismo, a misoginia, contra crianças e adolescentes e qualquer tipo de maiorias minorizadas ou violência por LGBTfobia, ou xenofobia, que correm livres nas redes.
Chegamos num impasse que precisa ser urgentemente superado, levando em consideração que vivemos um ano eleitoral e seus resultados não podem ser definidos pela mentira, por ódio ou crimes. Na semana passada, quando todos esperavam que o PL voltasse à pauta, foi proposta a criação de um novo grupo de trabalho para refazer a partir do zero, todo o debate já acumulado há quatro anos.
Em resposta, o Comitê Gestor da Internet no Brasil recomendou que o novo GT não abandone o trabalho realizado na construção do PL 2630. Diante da proliferação dos discursos de ódio e da desinformação, que ameaçam a proteção dos direitos individuais e coletivos dos usuários e a própria democracia a partir de um ambiente digital desregulado, o esforço para estabelecer parâmetros claros para a responsabilidade, liberdade e transparência na Internet não pode ser deixado de lado. E o PCdoB solicitou a manutenção do deputado Orlando Silva como relator.
A regulamentação é o caminho fundamental, que exige vontade política e grande poder de realização. Mas há outro caminho que pode ser trilhado enquanto o tempo da política não torna mais saudáveis e seguros os ambientes digitais que frequentamos. É o caminho da disputa de valores culturais. É obrigação dos progressistas e democratas afirmarem valores. A EXTREMA DIREITA NÃO PODE NOS PAUTAR. Nós é que temos de estabelecer as pautas importantes para o País e contribuirmos para gerar mais consciência social, senso crítico para filtrar e enfrentar os absurdos que chegam neste ambiente.
Com senso crítico somos capazes de analisar a realidade à nossa volta, identificar e anular fake news e combater discursos de ódio. A Cultura também tem o poder curativo de restaurar os contextos histórico, social, político e econômico que nos permitem tomar melhores decisões para escapar das armadilhas das fake news e enfrentar os problemas da realidade que podem complicar nosso futuro: crise climática, pandemias, desigualdade, extremismo, fragmentação. Com senso crítico e contexto, somos capazes de alterar a realidade, avançar e ganhar um mundo bastante possível para o bem comum. O ambiente digital não pode ser terra sem lei, à deriva e sem limites. Liberdades de ideias e debate sim, crime não! Portanto, não somos nós quem temos medo da regulação das redes.
*Jandira Feghali é deputada federal pelo PCdoB-RJ, vice-presidente nacional do PCdoB. Artigo publicado originalmente na Carta Capital.