Caso Americanas: a necessária tipificação do crime de infidelidade patrimonial
Há pouco menos de um mês, sem muita pirotecnia e sem apontar indiciamentos, foram concluídos os trabalhos da CPI da Americanas, que investigou a fraude contábil de mais de R$ 20 bilhões no caixa da empresa, até então uma marca sólida e de bom nome para qualquer brasileiro.
Embora tenha fugido dos holofotes, a Comissão Parlamentar de Inquérito produziu resultados em seus objetivos fundamentais, que eram elucidar como se deu o esquema fraudulento e identificar as fragilidades dos sistemas de controle, públicos e privados, que devem incidir sobre a administração de companhias desse porte.
O desdobramento desses objetivos está contemplado em sugestões aos órgãos, como a Comissão de Valores Mobiliários, por exemplo, já que a Americanas tem capital aberto – ou seja, ações em bolsa – e, principalmente, propostas legislativas que possam evitar brechas legais a serem exploradas por falsários e criar sanções contra as condutas criminosas, que é o tema que tratarei adiante.
Primeiro, vale a pena explicar o mecanismo sofisticado que permitiu a prática de crimes com dimensões incríveis. A fraude executada criava lucros fictícios no balanço da empresa, através da redução dos valores devidos a fornecedores e do não lançamento do risco sacado como dívida bancária.
Funcionava mais ou menos assim. Há um instrumento no ramo varejista chamado VPC, que ocorre quando o fornecedor dá descontos comerciais em um produto para o cliente final. A Americanas fraudava cartas de VPC para diminuir as dívidas com fornecedores em seu balanço de pagamentos.
Mas reduzir fraudulentamente uma dívida não produz liquidez de caixa. Pois é, aí vem o segundo passo: a empresa realizava a operação de risco sacado, que é uma antecipação de recebíveis feita junto ao banco, recebendo antes pelos produtos que teria a vender. Fez-se o caixa. Na sofisticação da fraude, eles diminuíam as dívidas com fornecedores e registravam o risco sacado em proporções bilionárias semelhantes, deixando um saldo que aparentemente era lucro no caixa.
Ocorre que, por óbvio, essa prática é ilícita e, em tese, ao menos quatro crimes foram praticados, sendo que à justiça caberá apontar os responsáveis. Houve, em tese, repito, associação criminosa (Art. 288 do Código Penal), na lógica suposição de que isso não foi obra de um lobo solitário; falsidade ideológica (Art. 299 do Código Penal), pela inserção de declaração falsa em documentos para alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante; manipulação do mercado (Art. 27-C da Lei 6385/1976), por realizar operações simuladas ou manobras fraudulentas para alterar valor de ativo mobiliário; e Insider trading (Art. 27-D da Lei 6385/1976), que é utilizar informação relevante ainda não conhecida do mercado para obter vantagem.
É importante ressaltar que, embora a Americanas seja pessoa jurídica de direito privado, ela emite e opera com ações na bolsa de valores, portanto, onde há regulação do poder público através da já referida CVM. Engana-se quem pensa que bolsa de valores é coisa só de ricos: segundo levantamento da B3, 17,6 milhões de brasileiros operaram algum tipo de investimento financeiro na bolsa em 2023. É muita gente, muitos jovens que investem pequenas quantias e podem ser prejudicados em um caso como esse.
Além disso, há impactos econômicos em cadeia causados por uma fraude desse tipo, que pode levar uma companhia desse porte à bancarrota, deixando milhares de desempregados, fornecedores sem pagamento com as consequências decorrentes para seus negócios, dívidas trabalhistas, tributárias e fiscais. Enfim, implicações mil.
Diante disso, defendi na Comissão Parlamentar de Inquérito uma proposta, que foi acolhida e agora terei a incumbência de relatar em projeto de lei, para criar o Art. 168-B no Código Penal, tipificando o crime de “infidelidade patrimonial”. Essa sugestão, que me foi trazida pelo jurista e amigo Dr. Juliano Breda, toma forma com a elaboração proposta pelo professor Rodrigo de Grandis:
Infidelidade Patrimonial
Art. 168-B: Abusar dos poderes de administração de um patrimônio alheio que lhe foram incumbidos por lei, ordem legal ou negócio jurídico, com o fim de obter vantagem de qualquer natureza em benefício próprio ou de outrem, mediante infração do dever de salvaguarda, causando prejuízo ao patrimônio administrado:
Pena – reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa
Em minha concepção, a política e, especialmente a atividade parlamentar, deve servir ao propósito de incidir naquilo que afeta a vida real das pessoas, para melhorar, é claro. Creio que o ensinamento do Caso Americanas nos mostra que a corrupção não é um mal que afeta apenas o setor público e pode, sim, partir do setor privado e causar malefícios a milhares de pessoas. Espero que a criação do crime de infidelidade patrimonial possa aperfeiçoar a legislação e contribuir para que fraudes assim não se repitam.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB-SP