Este ano, a Lei de Migração (Lei 13.445/2017) completou cinco anos. A legislação, relatada à época pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), produziu um avanço na política migratória brasileira ao revogar o Estatuto do Estrangeiro, editado na ditadura militar, e estabelecer em seu lugar uma norma baseada no respeito ao direito de migrar. No entanto, apesar do avanço estabelecido na nova lei, sua regulamentação deixou a desejar e normas infralegais editadas no governo Bolsonaro ameaçam algumas garantias estabelecidas.

O tema foi foco do debate realizado nesta quinta-feira (3) na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara, que reuniu representantes de organismos internacionais, da sociedade civil, da academia, do Poder Executivo e do Judiciário.

Ao abrir o debate, Silva, que hoje preside a CDHM, celebrou a construção da lei. O parlamentar lembrou que a atualização da legislação colocou o Brasil entre os países que tratam a migração como um direito humano. “Esse é o conceito essencial dessa lei, uma grande conquista da sociedade brasileira, que tem como um dos seus traços de formação social, econômica, história ser um país de migrantes”, afirmou.

Silvia Ruks, coordenadora residente do Sistema das Nações Unidas no Brasil, afirmou que a legislação brasileira é um marco, pois “está alicerçada na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos e cumpre importante papel na garantia desses direitos, o que representa um grande avanço na forma como o Brasil lida com a chegada dos migrantes”.

Proteção ao trabalhador migrante

Ruks destacou, no entanto, a importância de o Brasil ratificar a convenção das Nações Unidas (ONU) sobre a proteção aos trabalhadores migrantes. Entre os nove principais tratados internacionais de direitos humanos, apenas a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias não foi ainda ratificada pelo Brasil.

A cobrança pela ratificação do tratado também foi reforçada por outros participantes do debate. Uma comissão especial foi criada este ano na Câmara para tratar do tema, mas ainda não avançou.

Segundo Orlando Silva, o tema está entre suas prioridades. “Estabeleci como meta que este ano teremos a aprovação desta convenção”, afirmou o parlamentar.

Criada em 1990 pela ONU, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias contém dispositivos relativos a não discriminação, direitos humanos dos trabalhadores migrantes, direitos adicionais de migrantes documentados, e disposições aplicáveis a categorias especiais de trabalhadores migrantes e membros de suas famílias.

Na América Latina, a Convenção já foi ratificada por 13 países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai e Peru.

Regulamentação ameaça direitos garantidos

Outro ponto abordado no debate foi o impacto da regulamentação da lei. Feita no governo Temer, ela coloca em xeque garantias estabelecidas pela norma, viola a própria lei, e vem sendo criticada desde sua edição. Entre outros pontos, o decreto 9199/17 dá poderes, por exemplo, à Polícia Federal sobre a retirada compulsória, adia a regulamentação dos vistos e autorizações de residência por motivos humanitários, que era uma das grandes inovações da Lei de Migração.

Para Gustavo Zortea da Silva, representante da Defensoria Pública da União, a forma como a lei vem sendo aplicada limitou seu alcance. “É muito importante ciclos periódicos de avaliação da legislação. Precisamos ter em mente que essa lei foi um marco, um avanço inegável, especialmente se considerarmos o paradigma do Estatuto do Estrangeiro, que era uma proteção ao trabalhador nacional, e hoje o migrante é reconhecido, o coração da lei é baseado nos direitos dos migrantes. Mas como essa lei vem sendo aplicada? A principal reflexão que trago é que em diversos pontos ela teve um alcance limitado com base em normas infralegais. Isso significa dizer que a regulamentação da lei acabou restringindo o seu alcance, limitando avanços pretendidos”, afirmou.

Entre os pontos trazidos pelo defensor está a prisão para fins de deportação, que mesmo não constando na Lei 13.445, está prevista no decreto 9199. Gustavo Zortea da Silva criticou ainda a falta de diálogo do Executivo na regulamentação da Lei de Migrações. “O método adotado destoou muito do processo de construção coletiva para a formulação da Lei de Migração. Além disso, entidades foram retiradas do Conselho Nacional de Migração. A DPU chegou a formalizar um processo para pedir sua reinclusão ao Conselho e foi negada”, lamentou.

Virgínia Berriel, representando do Conselho Nacional de Direitos Humanos, endossou a crítica à regulamentação da lei. Para ela, “faltou sensibilidade do governo”. Berriel relatou missões recentes do conselho às cidades de Assis Brasil (AC) e Pacaraima (RR) onde constatou que a execução da lei ainda deixa a desejar na garantia dos direitos dos migrantes. Segundo ela, o atual governo não “abraço a questão migratória, deixando muitos migrantes em situação vexatória”.

“Existe um gargalo de tempo entre a entrada das pessoas, o visto e a interiorização. Recebemos denúncias de que no processo de interiorização essas pessoas eram contratadas por 2, 3 meses e depois eram demitidas e colocadas na rua. Faltam alojamentos dignos para receber esses migrantes. Em Assis Brasil, por exemplo, a cidade é pequena, recebia média de 60 pessoas por dia, sem qualquer estrutura para isso. Falta sensibilidade deste governo para abraçar a questão migratória. Se a migração é um direito humano, vimos muita violação dos direitos humanos nas missões que fizemos. Fizemos, inclusive, recomendações sobre essas missões e é importante o governo brasileiro olhar com carinho para o que determina a Lei de Migração”, pontuou.

No governo Bolsonaro, os ataques à Lei de Migração se mantiveram. Segundo Camila Asano, do Conectas, é preciso denunciar “a ofensiva à legislação”. “Por meio de decretos, portarias e outras normas infralegais o governo faz contornos para mutilar a legislação brasileira. No primeiro ano de Bolsonaro, por exemplo, a Portaria 666 criou a figura de deportação sumária, sendo que a lei não prevê isso. Tudo o que é sumário desrespeita princípios dos direitos humanos, logo, vai de encontro ao que preza a Lei da Migração. A Portaria 670 mantém sanções ilegais. Gostaria de aproveitar a presença do representante do Ministério da Justiça para indagar o que sustenta essas punições a partir do momento que as fronteiras brasileiras foram abertas?”, questionou em vão.

Agenda do futuro

Para o procurador da República André Ramos, além de aplaudir a nova legislação é preciso pensar numa agenda do futuro. E para proteger os avanços estabelecidos na legislação ele elencou cinco déficits que, em sua visão, precisam ser superados.

De acordo com Ramos há um “déficit normativo” que precisa ser superado com aprovação  de tratados, convenções e projetos “que reforçam as possibilidades de implementação dos direitos que a Lei de Migração traz”. “Por meio dos tratados, expomos com mais ênfase direitos que estão redigidos de forma genérica ou implícitos”, explicou.

O segundo déficit é o administrativo na implementação da lei. Para o procurador o pior deles foi a não implementação da Agência Nacional de Migração. “Falta visibilidade, foco, orçamento. Isso acontece pelo fatiamento das ações. O Poder Executivo não encaminhou a proposta de criação da agência. Então, penso, que esta deveria ser uma agenda puxada pela sociedade civil”, pontuou.

Ele destacou ainda o déficit de legalidade, convencionalidade e constitucionalidade. “Houve a edição do decreto de regulamentação da Lei de Migração e isso merece discussão, pois vários pontos dele vão contra a lei, como por exemplo, a possibilidade de prisão e deportação, o abalo ao pedido de refúgio.”

Ramos agregou ainda os déficits democráticos e de acesso à Justiça em sua lista. Para ele, não se discute migração sem a participação de todos os atores envolvidos, sobretudo, sem ouvir os próprios migrantes.

Encaminhamentos

Após duas horas de debate, ouvindo todos os presentes, o deputado Orlando Silva afirmou que a ideia do encontro era “ouvir o mosaico de atores que tratam do tema das migrações para sistematizar as contribuições e avançar na garantia dos direitos dos migrantes e refugiados”.

Segundo ele, o colegiado fará um trabalho de sistematização das propostas e denúncias feitas ao longo da reunião. “Penso que temos três eixos de trabalho: uma agenda legislativa, pois uma série de temas aqui abordados já são temas de projetos de lei ou convenções e precisamos avançar nessas tramitações; um segundo leque de questões diz respeito ao diálogo com o Poder Executivo, que é quem tem competência para regular as leis que impactam a vida dos migrantes. Penso que a própria comissão pode oferecer recomendações para que o Poder Executivo possa regular; e um terceiro leque poderia ser uma ‘agenda do futuro’. Vamos pegar as sugestões feitas e publicá-las. Parte dos debates aqui feitos demanda iniciativa do Poder Legislativo, mas estamos às vésperas de nova eleição e podemos ter uma agenda a oferecer para este debate”, concluiu.